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Um porto entalado na boca do rio

31/05/2020 Amigos da Terra Brasil

– Visagem? Não tem aparecido visagem na mata, não, moça; é na água, e a visagem toma outras formas, dá sempre jeito de assustar. (Visagem significa, em vocabulário local, “assombração”). Na região do Maicá, sudeste de Santarém, a visagem tem tomado formas bastante concretas, todo mundo vê e se preocupa: é a forma de um porto.

A Embraps (Empresa Brasileira de Portos de Santarém) pretende instalar um porto na Boca do Maicá, entrada do rio que se estica por um braço a partir do Rio Amazonas, retornando ao mesmo rio para então seguir seu fluxo em direção a Macapá (AP) e ao Oceano Atlântico. Suas águas têm rica biodiversidade e banham cerca de 50 comunidades, todas postas em risco caso o projeto do porto avance.

Essa história faz parte da reportagem “A história do cerco à Amazônia”. Navegue pelos conteúdos:

INTRODUÇÃO

Parte 1 (página central): A história do cerco à Amazônia
Parte 2: Quem é favorecido com as respostas de Bolsonaro às queimadas?

Parte 3: O “ganha-ganha” das empresas com a financeirização da natureza
Parte 4: Mas afinal, quem está por trás desses crimes?

HISTÓRIAS
1) O cerco explicado em um mapa
2) [você está aqui] Um porto entalado na boca do rio
3) Antes do porto chegar (se chegar), chegaram já os impactos

Pois então não é visagem: é a realidade que assombra; e é entre contações de histórias e risadas que Narivaldo dos Santos fala do Estudo de Impacto Ambiental da Embraps – Sabe, eu pesco aqui pirarucu, tambaqui, surubim, pacu, acará, pescada, aracu, carauaci, arauanã, acari, fura-calça, mapará, que é branquinho né… e tem bem mais, porque quando eu falo em acará, tem umas oito espécies só aqui na nossa região: o roxo, o bararuá, o boca-de-pote, o escama-grossa, o tinga, o açu… O tucunaré também: tem o açu, o pinima e o comum, e o surubi cabeça-chata, pinima e pintado e assim por diante. É tanto que a gente pode dizer – Hoje eu não quero esse, aí solta e pega o próximo, é um cardápio rico. Aí no estudo da empresa aparece quase nada de tipos de peixes, e nem de pássaros, jacarés, capivaras, tatus, nem o peixe-boi, que tá em extinção e a gente acha aqui no nosso rio... É, talvez os pesquisadores da Embraps não saibam pescar.

Narivaldo é líder da comunidade quilombola de Bom Jardim, tem 42 anos e não parece: corre rápido pelos troncos de palmeira caídos que servem como caminho até a área onde descansam as canoas e embarcações da comunidade pesqueira – das cerca de 120 famílias, pelo menos 90 pescam no Maicá, algumas para o comércio, outras apenas para a subsistência. Com os passos ágeis, ele faz parecer fácil o que definitivamente não é: mas embora tortuoso, as toras são ainda um caminho, e após cerca de dez minutos de frágil equilíbrio sobre as madeiras chegamos a uma bonita enseada, onde a grama verde encontra as calmas águas do rio, e ali agitam-se com leveza as canoas. A remo, o centro de Santarém está horas distante.

Pescadoras e pescadores artesanais estarão em risco caso projetos de portos avancem. No topo, Narivaldo observa enseada do Maicá. Fotos: Carol Ferraz / Amigos da Terra Brasil

Vez que outra um peixe se aventura num salto, como que a exibir a riqueza do rio – Não precisa nem ir longe pra achar mais que dois tipo de peixe, ri de novo o Narivaldo, antes de voltar a falar sério – Do governo a gente percebe que não estão nem aí pra Amazônia, pros nossos rios. De certa forma, já foi dada a ordem para a construção do porto. Só parou pela ação da FOQS [Federação das Organizações Quilombolas de Santarém], que protocolou o pedido pela consulta prévia junto ao MPF [Ministério Público Federal]. Se depender do governo o porto sai, as comunidades quilombolas querendo ou não: mas o que a gente puder fazer para evitar, vamos fazer. Eles dizem que os impactos podem ser compensados, mas isso não existe: a gente quer viver como vivemos hoje.

A instalação de um porto no Maicá (não só um: existem projetos para cinco portos no rio) vai significar a destruição daquele modo de vida e é um ataque direto às 12 comunidades quilombolas do entorno, a do Bom Jardim entre elas. Em testamento, os antigos donos de escravizados da fazenda local, que não tinham herdeiros, deixaram a terra para as seis famílias que eram exploradas ali. Isso há 142 anos: são quase dois séculos de pertencimento e luta naquele espaço. Agora, em nome do lucro de poucos, tudo pode desaparecer.

Consulta prévia e a Convenção 169 da OIT
Contudo, a mobilização popular e jurídica, com o apoio da Terra de Direitos, surtiu efeito e o licenciamento do projeto foi suspenso. A empresa deverá realizar consulta prévia, livre e informada a todas as comunidades atingidas – quilombos, indígenas e pescadores -, em acordo com a Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho). Os estudos da Embraps eram tão rasos que sequer consideravam o componente quilombola, tão relevante naquela área, o que também deverá ser acrescentado em um novo estudo a ser apresentado pela empresa. Embora não tenha poder de veto, a obrigatoriedade da consulta às comunidades atingidas pode ser considerada uma vitória: após a decisão judicial favorável, as 12 comunidades organizadas na FOQS apressaram-se para construir seu próprio Protocolo de Consulta, o que também foi feito pelas comunidades indígenas e pesqueiras impactadas.

Fotos: Carol Ferraz/Amigos da Terra Brasil

A suspensão do licenciamento também atrasa o cronograma do projeto, que é de alto impacto, permitindo maior tempo para a disseminação de informação na região. A previsão da Embraps era de que, somente no primeiro ano de funcionamento, 4,8 milhões de toneladas de grãos de soja poderiam ser exportadas pelo porto instalado no Maicá, grande parte vinda da região Centro-Oeste do Brasil por meio da BR-163. Vejam que também a infraestrutura de escoamento causa impactos aos territórios: caso semelhante ao da rodovia BR-163 é o da Ferrogrão, projeto de ferrovia que ligará a cidade de Sinop (MT) até Itaituba (PA) e que também causará danos ao longo de seu trajeto, em especial em unidades de conservação e em terras indígenas.

Um porto onde não pode haver porto
Um fato estranho, porém: no mesmo local onde seria instalado o porto da Embraps, um outro empreendimento surgiu – um posto de combustível para embarcações, à revelia de estudos de impacto ou da participação da comunidade. A empresa responsável é a Atem’s, distribuidora de petróleo que opera no Norte do país. Os danos já são sentidos, em especial na pesca, com o derramamento de combustível e o aterramento da área, que mudaram o fluxo de correntes d’água e de peixes. Em março deste ano, o Ministério Público paraense denunciou a empresa, seu sócio administrador e o engenheiro responsável pelo projeto pela prática de crimes ambientais. Para o órgão, a obra avançava sem a licença do órgão ambiental competente, além de ter sido apresentado um licenciamento divergente à Secretaria Estadual de Meio Ambiente do Pará, que se referia a cargas não perigosas – quando era sabido, desde o princípio, o objetivo de construção e instalação portuária para distribuição de combustível (carga perigosa).

Histórico da luta
Em maio, enfim uma boa notícia, após longa mobilização dos movimentos sociais de Santarém contra mais esse empreendimento que, sem qualquer consulta às comunidades locais, violava direitos e comprometia a biodiversidade da região: a Justiça Federal suspendeu as licenças prévia e de instalação do empreendimento da Atem’s e determinou a paralisação imediata das obras.

Em resumo, esse é o desenho do cerco do agronegócio aos territórios: expulsão de famílias de suas terras para o plantio da soja, contaminação das terras vizinhas pelo uso do agrotóxico, o transporte dos grãos rasgando territórios – seja via caminhão ou via trem -, sua chegada em portos que destroem os modos de vida tradicionais das redondezas, a exportação para que gere riquezas ao capital internacional. Para resistir a essa engrenagem, é necessária muita união e força. O andamento do projeto da Embraps representa ainda a remoção de famílias e a demolição de casas para a ampliação de vias, a chegada de centenas de trabalhadores de outros estados, uma mudança completa no cotidiano da região: a estimativa é que cerca de 900 carretas diárias passem pelas ruas do bairro Pérola do Maicá no percurso até o porto.

A luta contra a Embraps se dá desde 2013 (nessa linha do tempo, organizada pela Terra de Direitos, veja a cronologia das resistências à construção de portos no Maicá). São ao todo cinco portos planejados para a região, de três empresas – todos voltados para a exportação de grãos e commodities, em especial a soja. Além da Embraps, a construção de outros portos visa favorecer as atividades do Grupo Cevital, da Argélia, que atua no ramo agroalimentar e está envolvido com plantações da região Centro-Oeste do Brasil, e a empresa Ceagro.

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A história do cerco à Amazônia


Leia também as partes 2, 3 e 4 da introdução:

Quem é favorecido com as respostas de Bolsonaro às queimadas?
O “ganha-ganha” das empresas com a financeirização da natureza
Mas afinal, quem está por trás desses crimes?

E as histórias:

1) O cerco explicado em um mapa
2) [você está aqui] Um porto entalado na boca do rio
3) Antes do porto chegar (se chegar), chegaram já os impactos



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Ações: Impactos de Megaprojetos, Empresas e Violações dos Direitos Humanos, Quilombolas
Casos Emblemáticos: Portos do Maicá
Eixos: Terra, território e justiça espacial