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Entidades ruralistas que contribuem no julgamento do marco temporal pelo STF possuem conflitos com indígenas


Cerca de 11 pedidos de amici curiae acolhidos pelo Supremo Tribunal Federal são de entidades com casos públicos de violentos conflitos contra territórios indígenas. 

  Foto: Joedson Alves/ Agência Brasil

Ao menos 11 autores de pedidos de amici curiae (amigos da Corte) habilitados pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento de ações sobre direitos constitucionais e territoriais dos povos indígenas são de entidades vinculados ao agronegócio que possuem conflitos já instalados com territórios indígenas. O julgamento de ações sobre a tese do marco temporal será retomado pela Suprema Corte nesta quarta-feira (30).  

O dado é fruto do levantamento realizado pela Terra de Direitos e Conselho Indígena Tapajós Arapiuns (CITA) sobre os pedidos de amicus curiae nas ações que discutem a tese do marco temporal. O recurso jurídico-processual, assegurado pela Lei no. 11.418/2006 em julgamento de Recursos Extraordinários, possibilita que pessoas jurídicas, órgãos ou entidades especializadas e de reconhecida representatividade possam se manifestar sobre julgamentos de relevante interesse social, como é o caso do julgamento em questão.  

Ainda que não seja uma das partes do processo (figura como “terceiro interessado na causa”), o autor de amicus, quando habilitado, pode fornecer ao Supremo informações sobre o caso em julgamento. Além disso, a partir do momento em que um pedido de amicus curiae é habilitado é aberta a possibilidade para conversas dos autores dos pedidos junto aos assessores dos gabinetes dos ministros e ministras do STF e mesmo contato direto com eles. O instrumento processual tem então como uma das finalidades possibilitar que a Corte possa decidir acerca da matéria com o máximo conhecimento possível.   

Ao observar o número de pedidos de amici curiae realizados nas ações que tratam da tese do “marco temporal” é possível, de partida, reconhecer um forte interesse do agronegócio no julgamento. Dos 136 pedidos para o ingresso de amicus curiae de entidades que defendem a tese do marco temporal, 115 são entidades representativas ruralistas. Destes pedidos, 33 foram acolhidos. Coube ao relator do Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365, ministro Edson Fachin, definir quais pedidos de amicus curiae foram habilitados. A maior parte dos pedidos de amicus foi feita por entidades dos estados de Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso e Bahia. Em Minas Gerais, aliás, todos os 81 sindicatos ruralistas entraram com pedido de participação.  
 
       :: Veja como os argumentos de defesa da tese ferem a Constituição Federal, normativas internacionais e direitos humanos  

“A quantidade de petições como amici curiae por entidades ruralistas neste processo foi muito relevante para compreender a intervenção e forte interesse do setor do agronegócio na aprovação da tese do marco temporal. Isso porque outros setores não ingressaram com tantos pedidos, como os setores de mineração e setor de energia”, destaca o coordenador do Programa Amazônia, Pedro Martins. O coordenador sublinha também que, ainda que seja visível a articulação de organizações vinculadas ao agronegócio para este julgamento, houve importante mobilização de organizações de direitos humanos e indígenas no ingresso de pedidos de amici curiae

O assédio aos territórios indígenas por entidades ruralistas tem sido noticiado por veículos de comunicação

Conflitos com territórios indígenas  
Entre os 33 pedidos de amici curiae habilitados pelo STF para as ações sobre direitos territoriais indígenas, ao menos 11 possuem conflitos públicos com territórios.  

Ainda que os argumentos presentes destes autores sejam, em sua totalidade, de que a aprovação da tese do marco temporal pacificará as relações nos territórios, as realidades já são de conflitos. É o caso do conflito do Sindicato Rural de Amambaí contra a Terra Indígena Dourados-Amambaipeguá II e Iguatemipeguá II, no Mato Grosso do Sul. Em estágio de identificação, os povos têm sofrido uma sequência de ameaças e violências.  

Nas proximidades dos dois territórios, a TI Dourados-Amambaipeguá também convive com conflitos com outro autor de amicus curiae, o Sindicato de Carapó. Localizada nos municípios de Caarapó, Amambai e Laguna Carapã, a TI Dourados-Amambaipeguá teve parte da demarcação da TI anulada com base no entendimento do marco temporal em uma decisão liminar, em 2017, dentro de ação movida pelo proprietário de uma fazenda sobreposta à Terra Indígena. A sentença foi suspensa somente em julho de 2020, pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF-3). 

Os conflitos envolvendo a demarcação da TI resultaram no assassinato do indígena e agente de saúde Clodiodi Aquileu de Souza, em 2016, no episódio conhecido como Massacre de Caarapó. Na ocasião, cerca de 70 fazendeiros e pistoleiros encapuzados realizaram um ataque contra um grupo indígena acampado em uma fazenda que estava dentro da área identificada pela Funai como terra indígena. Além da morte de Clodiodi, outros seis indígenas ficaram feridos – cinco deles em estado grave. 

Com 151 territórios indígenas, o estado do Mato Grosso do Sul possui apenas 5 territórios indígenas homologados e 10 declarados, etapas finais do longo processo de demarcação dos territórios. Em 117 TIs não há providencias até o momento. A morosidade da demarcação de territórios indígenas no estado – marcado por forte identidade e avanço da agropecuária - em alto índice de conflitos. Em 2022 o Mato Grosso do Sul acumula 18 casos de conflitos relativos à direitos territoriais, de acordo com dados do Cimi. O levantamento registrou um total de 158 casos no último ano.  

“Os autores que ingressaram com amicus curiae e que possuem conflitos com territórios indígenas são o retrato do que pode acontecer com outras terras caso, porventura, a tese do marco for aprovada. Na nossa análise fica claro: não se trata da segurança jurídica e do direito de propriedade [argumentos presentes nos amici]. Trata-se de um direito originário dos povos indígenas, um direito congênito, que antecede a formação do próprio estado brasileiro. Temos alertado o STF que esta tese, pela mera tramitação, já tem gerado conflitos nos territórios indígenas, já gerou uma insegurança para os povos indígenas porque a parte mais fraca nesta ação são os povos indígenas”, destaca Dinamam Tuxá, um dos líderes da coordenação-executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). 

Julgamento da ação 
O processo em julgamento nesta quarta-feira trata de uma reintegração de posse movida pelo Instituto do Meio a Ambiente de Santa Catarina (IMA) contra o povo Xokleng da Terra Indígena (TI) Ibirama-La Klãnõ, de Santa Catarina. A ação foi reconhecida em 2019 pelo STF como de repercussão geral. Ou seja, a decisão das ministras e ministros sobre ação terá efeito vinculante sobre outros processos judiciais e consequências para todos os povos e terras indígenas no país, ao fixar o entendimento da Suprema Corte acerca dos direitos territoriais garantidos aos povos indígenas pela Constituição Federal de 1988. 

Um dos principais pontos neste processo trata da chamada tese do “marco temporal”. Defendida fortemente pelo agronegócio, a tese restringe o reconhecimento do direito dos indígenas aos seus territórios aos povos que estivessem instalados nestas terras na data de 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal. Na prática, esta tese – caso aprovada - inviabilizará novas demarcações, colocará em risco os processos em andamento e territórios já demarcados e pode representar um apagamento da violenta expulsão dos indígenas de seus territórios.  

Em 2021, o relator ministro Edson Fachin votou contra a tese, apontando seu caráter inconstitucional. Na sequência o ministro Kássio Nunes Marques manifestou-se contra os povos indígenas e votou favoravelmente à tese.  

Com pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes o julgamento foi retomado em junho deste ano. Ainda que o ministro tenha acompanhado o relator Fachin, manifestando-se contrário à tese, Moraes propôs uma terceira via. Em seu voto o ministro defendeu o pagamento de “indenização prévia” a proprietários de imóveis sobrepostos a terras indígenas e a compensação por “territórios de interesse público”. Na avaliação da Apib este caminho incentiva a invasão de territórios indígenas e violência contra os povos originários.  

Paralisado com pedido de vista de André Mendonça, o julgamento é retomado nesta quarta-feira e parte exatamente com a manifestação do voto do ministro. Indicado por Jair Bolsonaro (PL), Mendonça tem manifestado estreito alinhamento com o agronegócio e deve, de acordo com avaliação das organizações, votar em defesa do marco temporal. Oito ministros ainda precisam se posicionar sobre o tema e podem paralisar o processo para analisá-lo mais profundamente.  

Nesta quarta constam oito pontos na pauta do Supremo, cinco dos quais envolvem direitos indígenas. O caso de repercussão geral é o primeiro da lista. Caso a análise dos processos não seja concluída nesta quarta-feira, a pauta é transposta para os trabalhos da Corte de amanhã (31). 

“Se, porventura, a tese do marco temporal ou alternativas apresentadas no voto de Alexandre de Moraes for aprovada, gerará instabilidade nas terras já demarcadas e insegurança. Aí sim podemos afirmar que haverá insegurança jurídica porque nos territórios demarcados não há conflito. Além das áreas que hoje já vivem situações de conflitos, as áreas já pacificadas poderão ter conflitos porque seráa gerado uma enxurrada de novas judicializações daqueles processos que foram posteriores à 1988. Teremos um aumento das violações de direitos humanos dos indígenas”, aponta Dinaman.  

Ele destaca que os impactos do processo de demarcação dos territórios indígenas serão sentidos não apenas pelos povos originários. “A consequência da aprovação da tese é o aumento do desmatamento, aumento da exploração dentro dos territórios e o agravamento da crise climática, há uma consequência que a toda a sociedade brasileira e global irão sentir”, enfatiza.  

A defesa da tese do “marco temporal” também é de interesse da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), braço de incidência legislativa do agronegócio no Congresso Nacional. O Projeto de Lei 2.903/23, de autoria do Deputado Federal Homero Pereira (PL/MT) foi aprovado na última semana pela Comissão de Agricultura e Reforma Agrária (CRA) do Senado, e agora tramita na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ). Lá, a relatoria ficou com o senador Marcos Rogério (PL-RO), que já se manifestou publicamente a favor do marco temporal. O passo seguinte é votação em plenário do Senado. Com composição majoritária na casa legislativa - 50 dos 81 senadores – a medida não deve ter dificuldades em avançar.  

 



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Ações: Conflitos Fundiários

Eixos: Política e cultura dos direitos humanos