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Como o manejo tradicional do fogo pode ajudar a prevenir incêndios em Unidades de Conservação do Cerrado?


Apanhadora de flor sempre-viva da Serra do Espinhaço durante panha das flores/Foto: Arli Alves

O tempo seco em parte do Cerrado brasileiro tem preocupado servidores ambientais e as populações tradicionais da região. Isso porque a baixa umidade e os ventos podem favorecer a disseminação de grandes incêndios em Unidades de Conservação (UCs), como o que atingiu o Parque Nacional da Serra do Cipó e a Área de Preservação Ambiental (APA) Morro da Pedreira, em Minas Gerais, na segunda quinzena de agosto. Foram ao menos 440 hectares de área queimada no Parque e 6 mil hectares na APA – o equivalente a quase 7 mil campos de futebol –, resultados de, ao que tudo aponta, incêndios criminosos. 

Em 2023, ao menos 399,4 mil hectares de Unidades de Conservação federais do Cerrado foram atingidos pelo fogo (natural ou criminoso), segundo dados disponibilizados pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) no Portal Dados Abertos do Governo Federal. O valor corresponde a quase 61% do total de áreas incendiadas em UCs federais de todo o Brasil, no mesmo ano.

Diferentes fatores podem contribuir para o grande volume de área queimada no Cerrado. Além de ser uma região de expansão do agronegócio – os incêndios criminosos e o desmatamento são formas de ampliar áreas para agropecuária – o bioma tem características próprias que fazem com que as queimadas sejam ainda mais devastadoras. 

Professor da Universidade Federal de Juiz de Fora, o botânico Gustavo Soldati explica que, diferente de biomas como a Mata Atlântica e da Amazônia – que são florestas quase sempre úmidas –, o Cerrado se caracteriza por ser um ecossistema sazonal, com ocorrência de longos períodos de seca ao longo do ano. "Nesse momento, toda ou quase toda a biomassa da vegetação fica seca e mais suscetível a pegar fogo", explica. Além disso, ele destaca que o Cerrado apresenta uma característica muito específica: a existência de um estrato herbáceo, uma espécie de camada de ervas (sobretudo gramíneas) sobre o solo.  

"Então quando está tudo seco, essa capa de grama e erva sobre o solo permite que o incêndio se alastre por grandes extensões", explica. Segundo o botânico, o maior risco se dá quando esse extrato herbáceo cresce muito, criando uma grande biomassa. "Quando o fogo chega e encontra essa situação, é avassalador", alerta. 

A solução para impedir que a vegetação se torne tão vulnerável a grandes incêndios não é nova – ela é praticada há gerações pelas populações tradicionais do Cerrado. O principal recurso de prevenção às queimadas utilizado por essas populações é também bastante curioso: é o manejo do fogo que pode diminuir o potencial destrutivo do próprio fogo.  

O uso controlado do fogo é parte, por exemplo, do sistema agrícola desenvolvido por comunidades apanhadoras de flores sempre-vivas da Serra do Espinhaço, em Minas Gerais. O sistema agrícola das apanhadoras de flores já foi reconhecida como Patrimônio Agrícola Mundial do Brasil pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO).  

A panha de flores sempre-vivas é uma das principais fontes de renda das comunidades apanhadoras de flores da Serra do Espinhaço/ Foto: Naiara Bittencourt

De tempos em tempos, as comunidades queimam os campos onde nascem as espécies de flores sempre-vivas, que são importante fonte de renda das famílias, utilizando uma série de conhecimentos tradicionais que indicam o melhor dia e momento para essa prática. As comunidades utilizam o manejo do fogo para impedir que o estrato herbáceo cresça muito a ponto de prejudicar o desenvolvimento das espécies de flores sempre-vivas.  

O modo de vida tradicional das apanhadoras também a envolve criação de gado e animais de pequeno porte para subsistência, e o cultivo agroecológico em roças de toco e quintais produtivos. 

A prática adotada por essas comunidades revela que elas são grandes protagonistas no desenvolvimento de ações de enfrentamento ao desequilíbrio climático. O sistema agrícola desenvolvido pelas apanhadoras de flores ajuda a evitar a disseminação de grandes queimadas e contribui para preservação dos ecossistemas locais.  

A apanhadora de flor e coordenadora da Comissão em Defesa dos Direitos das Comunidades Extrativistas (Codecex), Maria de Fátima Alves, conhecida como Tatinha, conta que essa forma de manejo do fogo é diferente do fogo criminoso utilizado para devastar a vegetação local.  

O manejo tradicional do fogo, na verdade, é usado para a própria regeneração do Cerrado. “O que a gente faz, o que a gente sabe e o que a gente aprendeu foi a partir de gerações que foram fazendo pesquisas na tentativa de descobrir qual é a melhor forma de uso do fogo”, explica. E afirma: “A gente está em um bioma que precisa do fogo para se manter de pé, para se manter vivo”. 

Soldati explica que, no Cerrado, o manejo do fogo pode ajudar não apenas a evitar a disseminação de grandes incêndios como também contribuir para a manutenção de algumas plantas da região. "Algumas espécies botânicas produzem sementes que precisam passar por algum processo para começar a germinar. Algumas sementes só conseguem germinar se elas tiverem o fogo passando", conta.  

É o caso de algumas espécies de flores sempre-viva, como a flor Pé-de-ouro. Em Unidades de Conservação que o fogo não foi utilizado para manejo da espécie e em que há restrição de acesso por povos e comunidades tradicionais que fazem manejo tradicional do fogo – como costuma ser o caso em UCs de proteção integral, como nos parques nacionais –, houve diminuição da produção da flor na área.  

Proteção ambiental 

O manejo do fogo também vem se mostrando um aliado na preservação de Unidades de Conservação. Ainda que no Cerrado seja alto o número de hectares de UCs atingidas por queimadas causadas por fogo natural ou incêndio criminoso, foi possível observar uma queda significativa entre os anos de 2022 e 2023. Se no último ano as unidades do bioma perderam uma área de quase 400 mil hectares, em 2022 foram 720 mil hectares de UCs incendidas no Cerrado, uma queda de 44%. 

Segundo o coordenador da Coordenação de Prevenção e Combate a Incêndios do ICMBio, João Paulo Morita, essa diminuição pode ser explicada por dois fatores: "As nossas metodologias de análise de ocorrência do fogo foram refinadas nos últimos anos, aperfeiçoando os dados disponíveis", conta. "E também porque os institutos de meio ambiente vêm utilizando o fogo como ferramenta ecológica e de prevenção. Essa política vem dando resultados positivos, diminuindo as áreas atingidas por incêndios".  

A adoção de uma política que considere o fogo nas Unidades de Conservação tem sido considerado um avanço não apenas em termos de proteção, mas também de reconhecimento de uma necessidade que foi alertada durante anos pelos povos e comunidades tradicionais.  Ainda assim, as comunidades reivindicam maior reconhecimento do protagonismo na proteção ambiental. 

Avanços necessários 

Criado em 2002, o Parque Nacional (Parna) das Sempre Vivas, em Diamantina (MG), se sobrepôs a territórios tradicionais de panha de flores da Serra do Espinhaço e proibiu, durante anos, que as apanhadoras de flores manejassem o fogo ou realizassem a panha nas imediações do Parna. Com isso, a área esteve mais vulnerável aos incêndios e houve uma redução na produção de flores sempre-viva na região.  

As comunidades apanhadoras seguiram reivindicando o direito de continuarem a prática da panha na área que já era tradicionalmente ocupada antes da criação do parque, mas até o último ano, qualquer tentativa de manejo do fogo ou da panha de flores foi criminalizada.  

Leia | Apanhadoras de flores cobram do ICMBio solução de conflitos com Unidade de Conservação em Minas Gerais 

Advogada popular da Terra de Direitos, organização de direitos humanos que assessora juridicamente à Codecex, Marina Antunes conta que as apanhadoras e apanhadores de flores que tentaram manter a prática tradicional na área passaram a responder por crimes ambientais. Após muitos conflitos e reivindicações, a gestão da Unidade de Conservação estabeleceu em 2023 um Termo de Acordo com as comunidades, que suspendeu os processos de criminalização e propôs a elaboração de acordos comunitários que garantam às famílias a manutenção da prática tradicional da panha de flores.  

Para contribuir na elaboração desses acordos, foi instituído um Grupo de Trabalho com a participação do ICMBio, Codecex e organizações parceiras – entre elas a Terra de Direitos – que será responsável por elaborar uma proposta e submetê-la à consulta prévia nas comunidades quilombolas e apanhadoras de flores que estão sobrepostas pelo Parque.  

Ainda que tradicional e centenária, a prática da panha de flores tem sido criminalizada por alguns órgãos ambientais. Na Serra do Espinhaço, diálogos com ICMBio avançam para solução dos conflitos

Para a advogada, a abertura do diálogo por parte do ICMBio e a proposta de elaboração de acordos com a comunidade são avanços. “É preciso reconhecer que a existência das comunidades tradicionais foi fundamental para a preservação da área onde hoje se encontra o parque. É preciso que os órgãos ambientais compreendam isso para alinhar normas que considerem os saberes tradicionais associados à preservação ambiental”.   

Valorização do conhecimento tradicional 

A partir dos diálogos, o ICMBio compreendeu não apenas a importância da prática tradicional da panha de flores para as comunidades da Serra do Espinhaço mas também a importância do fogo para a prevenção dos grandes incêndios e para o manejo de espécies de planta dentro da Unidade de Conservação. No fim de 2022, a autarquia publicou um Plano de Manejo Integrado do Fogo para o Parque. 

As comunidades, no entanto, alertam que a efetividade do uso do fogo passa por reconhecer os conhecimentos tradicionais associados. A apanhadora de flor Tatinha conta que, no caso do Parque das Sempre Vivas, técnicos de fora vieram para conduzir o processo, que não condizia com as necessidades do ecossistema local. "Quando se fazia esse manejo tradicional a partir do ICMBio,  eles faziam quando podiam. E a gente faz quando a natureza determina. Tem o tempo certo, não é qualquer época, não é todo ano", destaca. 

O fogo manejado pelas apanhadoras é aplicado, em média a cada dois anos, de acordo com o tamanho da vegetação, após as primeiras chuvas e de acordo com os ventos, geralmente no fim do dia. A necessidade de reconhecer a sabedoria tradicional no uso do fogo também tem sido reivindicada na elaboração dos acordos comunitários com as comunidades apanhadoras. Uma das preocupações das comunidades é que os acordos devem considerar as especificidades dessa prática. 

A necessidade de uma autorização prévia do ICMBio, por exemplo, poderia prejudicar o manejo do fogo. Como o momento exato da aplicação do fogo não pode ser previsto – ele depende da chuva e de condições climáticas favoráveis –, não haveria tempo hábil entre a solicitação e autorização pelo órgão para garantir que o fogo possa ser aplicado no momento ideal. 

É por isso que, para Tatinha, as políticas de preservação ambiental como as aplicadas nas Unidades de Conservação precisam reconhecer o papel histórico das comunidades tradicionais na conservação do meio ambiente. "Essas comunidades não chegaram agora na serra. Elas manejam e fazem o uso da serra, cuidam da serra como a serra cuida da gente há mais de 1.500 anos". 



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