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Portos do Maicá: entre violações de direitos e silenciamento


Comunidades quilombolas do Lago do Maicá continuam sendo ignoradas pelo Estado e pela empresa Atem sobre a violação de seus territórios. 

Empresa Atem instalada sem consulta prévia, livre e informada na região do Lago Maicá / Foto: Arthur Serra Massuda

No site da Atem Distribuidora de Petróleo S.A, a empresa se apresenta como uma referência de sucesso na região Norte do Brasil, que tem como política a qualidade e a atuação na proteção do indivíduo e do meio ambiente, promovendo o bem-estar, a saúde e prevenindo a poluição. No entanto, essa não é a versão contada (e vivenciada) por comunidades quilombolas, ribeirinhas, pescadores tradicionais e povos indígenas da região do Lago do Maicá, na cidade de Santarém/PA, que sentem cotidianamente os impactos e violações de direitos em seus territórios provocados pela empresa.

A empresa é ré, junto com o Estado do Pará, em duas Ações Civis Públicas propostas pelo Ministério Público Federal (MPF) e Ministério Público Estadual (MPPA), com tramitação na Justiça Federal de Santarém. Uma tem como objeto, em síntese, a declaração de nulidade das licenças prévias e de instalação da empresa, enquanto na outra ação o objeto é a declaração de nulidade integral dos processos de licenciamento ambiental em razão de fraudes praticadas. Além disso, tramita na justiça estadual uma ação penal que visa apurar suposta prática do crime de fraude no processo de licenciamento ambiental do porto em construção pela empresa.

Em uma decisão judicial monocrática de segunda instância de novembro de 2020, um desembargador do Tribunal de Justiça do Pará modificou a liminar que suspendia a continuidade das obras do empreendimento portuário privado da Atem em razão da ausência do direito à consulta prévia, livre e informada das comunidades quilombolas, povos indígenas e populações tradicionais. Na referida decisão o desembargador evoca o “direito de empreender” alegando a necessidade de “prestigiar a liberdade econômica do empreendedor acautelando-se os investimentos já realizados de boa-fé, tendo em vista que eventuais impactos podem ser objeto de medidas compensatórias em favor das comunidades culturais.”

Quais sujeitos? Quais direitos?  

O acionamento deste discurso pelo Poder Judiciário para liberação de grandes empreendimentos que violam e impactam negativamente comunidades quilombolas, povos indígenas e populações tradicionais atingidas não é recente. Nos anos de 1999 e 2000, a chegada da empresa multinacional Cargill Agrícola S.A, em Santarém, foi respaldada por diferentes órgãos, como a Justiça Federal e a Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade do estado do Pará (SEMAS). (Confira estudo "Sem Licença Para Cargill" da Terra de Direitos)

Desse modo, surgem alguns questionamentos: até que ponto o sistema de justiça brasileiro internalizou nas suas práticas jurídicas os direitos de povos e comunidades tradicionais reconhecendo-os como sujeitos de direitos? Qual ponderação é feita entre o agir para conter a demora de suspensão de uma obra portuária privada e colocar o direito a consulta prévia, livre e informada como um entrave? E ainda, diante das vastas obras portuárias que foram e estão sendo construídas no estado do Pará, em sua grande maioria sem o respeito à consulta prévia, livre e informada das populações indígenas e comunidades tradicionais, até que ponto o Poder Judiciário não se configura como um ator social que contribui para essas violações?

As situações de violações do direito à consulta prévia, livre e informada das comunidade e povos tradicionais passam necessariamente pela interrelação entre atores públicos e privados. Não raro, atores do próprio sistema de justiça atuam como violadores de direitos ao adotarem uma perspectiva de que os direitos dos povos e comunidades tradicionais divergem de um “desenvolvimento sustentável”, resumindo essa expressão a uma política de flexibilização de normativas ambientais em detrimento de grandes

A ideia de que primeiro constrói-se uma obra portuária, para garantir o direito de quem empreende, e apenas depois é pensada a reparação aos povos e comunidades afetadas é falha. Não há, nesse sentido, uma priorização das medidas compensatórias. Pensar dessa forma é relativizar a aplicação do direito à consulta prévia, livre e informada sob a justificativa de que depois haverá medidas reparatórias, é priorizar a violação em detrimento do cumprimento do direito.

Comunidade quilombola do Bom Jardim, uma das comunidades afetadas pela empresa Atem / Foto: Franciele Petry

Quais violações? Quais silenciamentos?

Se não é recente a interrelação entre atores públicos e privados na fragilização e desrespeito do direito à consulta prévia, livre e informada de comunidades quilombolas, povos indígenas e comunidades tradicionais, também não é recente a invisibilização desses sujeitos quando, em tendo seus direitos violados pelos grandes empreendimentos, recorrem ao Poder Judiciário e também são silenciados.

A Federação das Organizações Quilombolas de Santarém (FOQS), associação civil sem fins lucrativos que congrega 12 comunidades quilombolas do município de Santarém, entrou com uma petição, em 17 de setembro de 2020, requerendo o ingresso como assistente litisconsorcial na ação civil pública que tem como ré a empresa Atem. Além de preencher os requisitos legais que demonstram sua capacidade jurídica postulatória para atuar como representante legal das comunidades quilombolas, a FOQS argumentou sobre a necessidade da realização da consulta prévia, livre e informada por meio do seu protocolo de consulta, publicado em 2016.

Em 24 de maio de 2021, diante do silêncio para apreciação do pedido feito em juízo, a FOQS reiterou o requerimento e ponderou que o ingresso na ação configura o acesso à justiça pela entidade que possui representação jurídica das comunidades quilombolas afetados pelo empreendimento da empresa ré Atem. A Federação entende que, apesar do Ministério Púbico Federal e Ministério Público Estadual estarem atuando nesta defesa, é importante a representação coletiva legítima das próprias comunidades quilombolas.

Nesta sexta-feira (17), data em que completa um ano desde o ingresso do pedido na ação, a FOQS reitera o pedido feito ao Poder Judiciário um ano atrás para ingresso na ação judicial que fala sobre as violações de direitos e impactos negativos em seus territórios causados pela construção portuária irregular da empresa Atem. O silêncio, até então, tem sido a resposta.

Comunidades quilombolas, além dos povos indígenas e comunidades tradicionais, foram (e continuam sendo) completamente ignoradas pelo Estado e pela empresa ré Atem sobre a violação de seus territórios. O Poder Judiciário, órgãos estatais ambientais de fiscalização e setores econômicos aparecem como sujeitos que contribuem para o silenciamento desses sujeitos e para as relativizações de seus direitos. Seja pela invisibilização desses sujeitos no tocante a efetivação do seu direito à consulta prévia, livre e informada, seja pela morosidade na apreciação do pedido em analisar o ingresso da organização que representa as comunidades quilombolas atingidas pelo empreendimento.

No primeiro pedido de ingresso na ação civil pública, foi encaminhado o protocolo de consulta da Federação das Organizações Quilombolas de Santarém. Na parte do texto que pontua o porquê da elaboração do documento, as comunidades quilombolas respondem “Para mostrar que nós existimos e que não aceitamos qualquer empreendimento em nosso território sem que sejamos previamente consultados. Isso é nosso direito, que está na convenção 169 da OIT”.

 

*Luísa Câmara é assessora jurídica popular da Terra de Direitos


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Ações: Quilombolas,Empresas e Violações dos Direitos Humanos
Casos Emblemáticos: Portos do Maicá
Eixos: Terra, território e justiça espacial
Tags: Quilombolas,Portos do Maicá,Violação de Direitos Humanos