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O Poder Judiciário pode regulamentar o direito à consulta prévia, livre e informada?

29/04/2021 Pedro Martins, Luísa Câmara Rocha e Gabriele Gonçalves, assessores jurídicos populares da Terra de Direitos

Indígena Tupinambá, cuja aldeia está localizada dentro da Resex Tapajós Arapiuns. São ao menos 78 aldeias e comunidades tradicionais dentro da Reserva Extrativista / Foto: Leonardo Milano/Amazônia Real

Uma decisão liminar concedida em uma Ação Civil Pública para a suspensão dos projetos de manejo florestal dentro da Reserva Extrativista (Resex) Tapajós Arapiuns, no Oeste do Pará, se tornou emblemática para o tema da consulta prévia, livre e informada. Nela, o juiz federal da 2ª Vara da Justiça Federal de Santarém argumentou que “quanto à consulta prévia do art. 6º da Convenção n. 169, da OIT, não há referencial legal de como deve ser feita, deixando ao magistrado do caso a aferição, deveras complexa, em cada caso, se os interesses foram levados em conta, em suma, se o direito foi materialmente cumprido.”.

A ação judicial, ajuizada pelo Conselho Indígena Tapajós e Arapiuns (CITA) e pelo Sindicato dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares do município de Santarém (STTR), pede que os procedimentos de aprovação dos Planos de Manejo dentro da Resex localiza entre Santarém e Aveiro (PA) sejam suspensos até que seja realizada a consulta prévia, livre e informada das comunidades e aldeias do local. O pedido havia sido parcialmente atendido em decisão liminar em novembro passado, mas foi revogada pelo próprio juiz no dia 26 de abril de 2021

Esse fato revela uma discussão importante sobre o direito à consulta prévia, livre e informada dos povos e comunidades tradicionais. E mais do que isso, a decisão nos faz refletir como deve ser a atuação do Poder Judiciário em casos semelhantes que discutem o direito à consulta prévia em situações em que existem estruturas de gestão com participação aberta para comunidades tradicionais e povos indígenas, mas com a presença de órgãos públicos e ONGs.

Direito à consulta prévia, livre e informada: quem são os titulares desse direito?

Previsto na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) – um tratado internacional de direitos étnicos –  o direito à consulta prévia, livre e informada assegura que povos e comunidades tradicionais sejam consultados cada vez que estejam previstas medidas legislativas ou administrativas que possam afetá-los direta e indiretamente. A convenção 169 da OIT, ratificada pelo Brasil por meio do Decreto nº 5.051/2004, estabelece e reconhece como sujeitos titulares deste direito os povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais. Serão esses os sujeitos titulares fundamentais do direito em questão.

Essa afirmação é importante pois busca afastar tentativas que relativizam o protagonismo desses sujeitos sobre a necessidade de serem prioritariamente consultados, conforme previsto na Convenção nº 169 da OIT. Audiência públicas realizadas pontualmente não substituem a necessidade da realização da consulta prévia, livre e informada. São situações e objetivos diferentes com instrumentos jurídicos de naturezas distintas. A consulta não será livre se for restrita ao quórum de deliberações de um Conselho em processos de tomada de decisão compartilhados com outros sujeitos que não são sujeitos da Convenção nº 169 e com o próprio Estado.

Diante do princípio da inafastabilidade da atuação do Poder Judiciário – ou seja, o princípio de que o Judiciário poderá ser acionado em toda e qualquer circunstância –, cabe refletir também se o judiciário tem mecanismos suficientes para tratar de conflitos étnicos envolvendo a consulta prévia, livre e informada. No momento em que o Judiciário recebe a demanda de decidir sobre a questão se “foi cumprida ou não foi cumprida a Convenção nº 169 da OIT”, o juiz poderia instruir melhor o processo, pois haveria de investigar um princípio pouco tangível ou delineável: a autonomia dos povos.

A inexistência de regulamentação do Direito de consulta prévia, livre e informada não é obstáculo para sua aplicação, seja porque como norma de direitos humanos tem aplicação imediata, bem como na prática, os Protocolos de consulta se tornaram instrumentos de regulamentação territorial da consulta. A partir de experiências de países vizinhos, no Brasil começaram a ser feitos Protocolos como expressões da deliberação de grupos étnicos sobre a forma de serem consultados. Uma das primeiras experiências foi do povo Wãjapi, em 2014. A partir de então as elaborações de Protocolos aconteceram em várias regiões do país para dar exemplo “palpável” a expressão de sua autonomia.

O que acontece no caso da Resex Tapajós Arapiuns vai na contramão nesse processo histórico de garantia do direito de consulta prévia, livre e informada. O fato de não existir um Protocolo de Consulta elaborado pelos povos e comunidades afetados foi utilizado pelo juízo como forma de desresponsabilizar o ente público do dever de ouvir as comunidades e povos tradicionais. Uma vez que a vinculação obrigatória do direito à consulta prévia é oriunda da necessidade desses sujeitos de serem ouvidos e não da existência em si de um protocolo já finalizado.

Além do mais, a fragilidade de uma decisão liminar que foi revogada sem uma audiência de conciliação para que esses sujeitos fossem minimamente ouvidos nos dá pistas de que talvez o objetivo maior não era ouvi-los, mas sim, falar por eles. A decisão do juiz foi para além da abertura da Resex para exploração da madeira, e da substituição dos Protocolos de consulta por instrumentos de gestão partilhados com o poder público e entes privados: na decisão se cria o instrumento da presunção de consulta prévia, livre e informada.

A decisão proferida pelo Magistrado além de afrontar o texto trazido pela Convenção 169 da OIT, denuncia o posicionamento do poder judiciário no que tange aos direitos e garantias  dos povos tradicionais e evidencia a fragilidade a qual estes povos estão inseridos, mediante a visão parcial do estado nos casos de direitos coletivos e étnicos, envolvendo conflitos dos povos tradicionais e empreendimentos. A Justiça brasileira coleciona uma série de sentenças e decisões injustas em total desconformidade com a lei, quando os sujeitos são pessoas vulneráveis. A presente decisão nos convida a refletir sobre o cenário presente e futuro da Justiça, que ao invés de promover a proteção das comunidades indígenas e a preservação dos seus direitos, age fortalecendo práticas crescentes e continuas de violação de direitos.



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Ações: Conflitos Fundiários
Eixos: Política e cultura dos direitos humanos