Notícias / Notícias



Quilombo Surubiu-Açú (PA): a luta pelo reconhecimento do território pelo Estado em tempos de retrocessos


Certificada pela Fundação Palmares, a comunidade localizada em uma várzea avança no enfrentamento da invisibilidade aos olhos governamentais.

Diferentes gerações da Comunidade vivem de pesca artesanal e atividades agrícolas. Foto: Diego Pérez

Ainda que o anúncio realizado pelo superintendente substituto da Superintendência Regional do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) de Santarém (PA), Raimundo Guilherme Pereira Feitosa, na reunião com comunidades quilombolas do Oeste do estado seja de que, até o momento, não há informações sobre recursos disponíveis para a política quilombola para o 2019, a conversa realizada na última quinta-feira (04), na sede regional da autarquia, não desmobiliza a Comunidade Quilombola de Surubiu-Açú a seguir com o processo pelo reconhecimento do Quilombo, por meio do título e políticas públicas, pelo Estado brasileiro.

A memória recente da certificação do quilombo pela Fundação Palmares, embora passo inicial na complexo rito para titulação do território, é elemento animador para resistir aos anúncios e evidências de paralisação da política quilombola pelo governo federal.

“A certificação anima. Só aumenta a vontade e coragem em lutar pelo nosso território. É verdade, a gente está encarando este governo e sabe que vai ser difícil, mas a gente não vai desistir. Vamos levar a certificação para Incra pra reconhecer a nossa comunidade quilombola e começar a cobrar nosso direito do povo quilombola, povo negro, direito que nós temos”, declarou o vice-presidente da Associação dos Remanescentes do Quilombo da Comunidade Quilombola de Surubiu-Açú, André Lopes Cardoso em referência à continuidade da mobilização da comunidade mesmo diante do cumprimento das declarações feitas por Jair Bolsonaro (PSL) durante campanha eleitoral à presidência.

Mulheres da Comunidade com a certificação da Fundação Palmares. Foto: Ciro BritoParalisia
Em outubro, Bolsonaro declarou que não iria conceder “nenhum centímetro de terra” para indígenas e quilombolas. Completos cem dias de nova gestão na última semana, a política de titulação encontra-se em total paralisia: neste período não houve novas titulações e publicação de decretos de desapropriação, portarias e relatórios de identificação dos territórios.

O orçamento 2019 para titulação de territórios quilombolas é de pouco mais de R$ 3.400 milhões – valor distante do cerca de R$ 27 milhões necessários para titulação dos processos já avaliados pelo Incra.  Assim, o orçamento disponibilizado atenderá apenas a 13% da demanda atual de recursos. No ritmo atual, o Brasil levará mil anos para titular todas as comunidades quilombolas.

A reconfiguração administrativa dos ministérios também colabora para sustentar uma política de obstaculização da política quilombola. Pela Medida Provisória n° 870/2019, o Incra foi realocado da Casa Civil da Presidência da República para o Ministério da Agricultura. Tanto o mais alto cargo da pasta quanto a secretaria responsável pela titulação estão sob comandos de expoentes vinculados ao agronegócio e opositores à política de titulação quilombola: a ministra de Tereza Cristina (PSL) e o ex-presidente da União Democrática Ruralista (UDR) Nabhan Garcia, respectivamente.

Ainda que um problema histórico, a ausência de disposição da nova gestão em fortalecer a política e órgãos voltados à titulação, somado a um orçamento baixo para a titulação de territórios quilombolas, foi objeto de nova denúncia internacional, em fevereiro deste ano, por organizações de atuação na defesa dos povos tradicionais e pauta socioambiental, entre elas a Terra de Direitos.

O problema tem também rebatimento direto na atuação das superintendências regionais. Sem repasse de recursos da autarquia federal para as regionais, as etapas do processo de regularização dos territórios quilombolas, executadas com recursos da União, não avançam. Uma boa fotografia da paralisação da política é a ausência de plano de ação, como ocorre em Santarém.

A superintendência regional declarou, em resposta à Terra de Direitos, que “não repassamos na mesa [quilombola, com representantes das comunidades] o planejamento para 2019, pois ainda não temos posicionamento oficial da Sede quanto a recursos disponíveis para este ano, logo, neste momento, não há recurso para trabalhos de campo referentes a nenhum dos processos de regularização quilombola em trâmite na Superintendência”. Isto significa que a elaboração do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID), uma espécie de laudo profundo da área e das famílias, de Surubiu-Açú pelo Incra Santarém, por exemplo, não pode ser executada até o envio de recursos para a regional. Sem o Relatório, a Comunidade não avança no acesso ao título do território.  A superintendência ainda declarou que não há previsão sobre informe do orçamento para as ações nos territórios.

“A reunião com Incra não foi o que a gente esperava, eles não tem uma posição sobre continuação do [trabalho do] Incra em Santarém e o que eles podem estar fazendo. Não tem previsão de retorno. Na verdade não tem nada”, enfatiza o presidente da Federação das Organizações Quilombolas de Santarém (FOQS), Dileudo Guimarães.

A reunião intitulada “mesa quilombola” entre o Incra Santarém e representantes das comunidades ocorre a cada três meses. De acordo com o cronograma era para ter sido realizada uma conversa em janeiro. Sob justificativa de indefinição do novo superintendente regional, definido pelo comando federal, a reunião foi transferida para março. Ocorreu em abril. O agendamento da próxima reunião evidencia o lugar de indefinição da política. Por pressão dos participantes da reunião do dia 04 a agenda seria em maio. A superintendência tinha sugerido realizar em junho. No entanto, com a mesa já desfeita, no dia seguinte o Incra informou que a mesa seria transferida para julho em razão de agendas concorrentes do Ministério Público Estadual e Federal.

Comunidades do Oeste do Pará
A assessoria à doze comunidades quilombolas localizadas no Oeste do Pará pela Federação das Organizações Quilombolas de Santarém envolve grandes desafios. Apenas a Comunidade Quilombola Pérola do Maicá teve seu território titulado, e ainda é uma titulação parcial. As comunidades restantes ainda se encontram em etapas que podem, a depender da compromisso do governo federal, levar anos para serem superadas. (veja infográfico das etapas)

Resumo esquemático elaborado pela Terra de Direitos. Referência: Site Incra

As etapas da titulação não são, necessariamente, superadas sem intercorrências. Isto porque diferentes órgãos públicos, como a Advocacia Geral da União, e proprietários particulares podem apresentar recursos que paralisam o rito do processo de regularização. No caso de Surubiu-Açu, por exemplo, por se localizar numa ilha, uma área que pertence à União, o processo é, em um dado momento, remetido à Secretaria de Patrimônio da União (SPU). É o órgão que deve emitir o título.

Ainda distantes da última etapa que confere o título à comunidade, pelo menos não na urgência das necessidades dos quilombolas, a comunidade de Surubiu-Açu avalia que a superação da etapa primeira de regularização do território deve ser celebrada.

“Acredito que vai trazer um grade incentivo não só pra mim, mas pra Daniele [presidente da Associação da Comunidade]. O quilombo que ficou muito alegre, e falam que daqui pra frente vão trabalhar com mais responsabilidade. É momento aproveitar, procurar saber quais são nossos direitos e lutar por eles”, se entusiasma o vice-presidente da Associação da Comunidade de Surubiu-Açu, André Lopes Cardoso.

A diretora da FOQS, Lídia Roberta Amaral, explica que o certificação, ainda que não tenha o valor jurídico do título, garante, como requisito prévio, o acesso à algumas políticas públicas, como a distribuição de cestas básicas pela Fundação Palmares, e participação em editais.

Além do atendimento a necessidades objetivas da comunidade, a certificação é instrumento político de pressão ao governo federal pela defesa dos direitos quilombolas – de existência de um povo que o Estado não deve ignorar. “A certificação de Surubiu-Açu é importante especialmente nesses tempos, pois viabiliza a solicitação de regularização ainda sob o império do Decreto nº 4.887/2003, que avaliamos estar em vias de extinção a qualquer momento. Esse foi um marco legal histórico para as comunidades quilombolas, que garantiu direitos os quais as comunidades não têm como abrir mão”, aponta o assessor da Terra de Direitos, Ciro Brito.

O governo federal tem acenado, desde a posse, que avalia revogar o Decreto 4887/03, que trata da identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos. A medida teria impactos diretos na interrupção nos processos de titulação.

Uma ilha em movimento
O município de Santarém fica a três horas da ilha. Foto: Diego PérezO relato do seu André sobre a relação com a comunidade de Surubiu-Açu mira para o passado e para o futuro. Nos seus setenta anos de idade viu a comunidade se constituir, se mover pelo fenômeno conhecido como “terras caídas” e a se reconhecer como quilombola. Pescador artesanal e agricultor, André Lopes Cardoso, sabe que há muita luta pela frente. Recém eleito, responde pelo cargo de vice-presidente da Associação dos Remanescentes do Quilombo da Comunidade Quilombola de Surubiu-Açú. A direção é dividida com a presidente Danielle dos Santos Menezes, pescadora de 24 anos.

“Eu aceitei participar da diretoria porque já vivi um tanto aqui e a Danielle é muito nova. Ela tem muito pela frente para trabalhar e é a juventude que dá continuidade ao futuro das coisas”, relata seu André. “Eu vou aprender com a sabedoria dele [do André], eu ajudando ele, ele me ajudando”, diz Danielle, sobre uma gestão da Associação orientada por uma troca intergeracional.

O “viver tanta coisa” de Seu André também inclui o domínio sobre a alternância de trabalho em razão de períodos de águas altas e baixas. Por estar localizada em área de várzea, a margem direita do Rio Amazonas, o trabalho na ilha de Surubiu-Açu é definido pelo movimento pelas águas - alternado entre atividades agrícolas e pesca artesanal. A pesca e produção alimenta a ilha e o excedente é comercializado em Santarém. “A gente sustenta o povo da cidade com o peixe e a fruta que plantamos”, diz Seu André.

Com a baixa das águas nos meses do verão, as margem expostas da ilha sofrem de instabilidade por conta correnteza e acabam cedendo. Os grandes blocos de terras que se desfazem das margens acabam por “movimentar” a ilha. De acordo com o relato histórico encaminhado para a Fundação Palmares, elaborado pelo antropólogo Diego Pérez Ojeda del Arco, os relatos orais dão conta que as casas se instalaram na ilha em 1975. “As casas que hoje em dia estão aqui antes eram todas do outro lado, porque aqui só era Rio, o Amazonas cobria tudo”, aponta um morador, no documento enviado à Palmares. O documento aponta que a ilha de Surubiu-Açu estava vinculada ao centro de Surubiu-Açu.

Quando a gente vive numa terra nossa, nascido e criado lá, a gente tem um amor por ela”

Ainda que a instalação da ilha na atual localização remeta aos tempos mais recentes, a história da Comunidade, de acordo com relatos, faz referência direta à Cabanagem, revolta popular ocorrida entre anos 1835 e 1840, na então província do Grão-Pará (atual estado do Pará). Os moradores relatam que descendem diretamente de trabalhadores escravizados que se refugiaram na ilha. “Meus avós moravam lá [na ilha], tiverem meus pais. Nossos pais criaram a gente. A ilha é nova, nossa história é velha”, aponta Seu André, pai de oito filhos, todos criados em Surubiu-Açu.

Qualquer sinalização de riscos ao vínculo dos sujeitos com território – como a ação do governo federal ou o avanço da criação de bois na ilha - estremece uma forte memória e perspectivas de futuro. “Quando a gente vive numa terra nossa, nascido e criado lá, a gente tem um amor por ela. A terra é fenômeno que dá vida ao povo, sustenta nossa família, tudo vem da terra”, diz ao recordar a fartura de alimentos gerados pela terra de Surubiu.

Seu Martinho dos Santos Menezes é, atualmente, o morador mais velho de Suribiu-Açú. Foto: Diego Pérez

Além da fragilização da política quilombola a ameaça pela criação de animais também se faz presente. “Um fazendeiro entrou lá [na ilha], sem a nossa permissão e sem consultar a comunidade. O gado já invadiu as plantas e até mesmo as casas das pessoas. Eles derrubam as arvores e ainda contaminam o Amazonas”, denuncia Danielle.

A dificuldade de acesso à políticas públicas essenciais – como fornecimento de luz e agua potável – e ausência de escolas faz da permanência na ilha um ato de resistência. A presidente da Associação denuncia que a comunidade arcar sozinha com custo diário de transporte de barco, de cerca de três horas, até a escola, em Santarém. “Quando as os estudantes chegam no ensino médio não tem como ficar lá, na ilha. Eles vão pra casa de parente, em Santarém, e por isso o quilombo fica fraco”, complementa André. Com a certificação, a Comunidade projeta esperanças de oferta de infraestrutura aos moradores da pequena ilha.

 

 

 



Ações: Quilombolas

Eixos: Terra, território e justiça espacial