População em situação de rua é ameaçada com instalação de grades no Mercado Municipal em Curitiba
Franciele Petry Schramm
Mais de 100 pessoas que dormiam no local foram intimidadas pela Guarda Municipal armada
As reformas no Mercado Municipal de Curitiba, no centro da capital paranaense, vão impactar principalmente a população em situação de rua que busca abrigo na região. No domingo (23/9), guardas municipais intimidaram mais de 100 pessoas que estavam no local com ameaça de despejo, para que fosse possível a instalação de grades ao redor do prédio.
As grades impedirão que a população em situação de rua acesse o edifício. Próximo à rodoviária da cidade, em região central, com arcos que garantem maior proteção ao frio, o Mercado Municipal chega a abrigar cerca de 300 pessoas em noites de chuva e frio.
Segundo relatos do integrante do Movimento Nacional da População em Situação de Rua Elizeu dos Santos Lino, o prédio já está em reforma há algum tempo, mas as grades começaram a ser instaladas agora. Guardas municipais foram até o local para acompanhar e comunicaram que as pessoas não dormiriam no espaço. Os guardas estavam armados com uma arma de calibre 12.
“A Fundação de Ação Social (FAS), responsável pela assistência social do município, nem deu as caras aqui. A população em situação de rua está muito preocupada, porque a FAS não deu nenhuma informação nem parecer de onde vai colocar esse povo”, conta Elizeu. E completa: “O que está acontecendo aqui é uma violação de direitos total. No momento o único direto que estamos tendo é o da segurança pública, que funciona pro lado inverso. Em vez de proteger a vida, estão defendendo o patrimônio público”.
A possibilidade de despejo preocupa quem acessa o local. Julio, que está em Curitiba desde fevereiro, não sabe onde dormirá quando for despejado. “Bem ou mal aqui, aqui salvou muita gente no inverno. Imagina dormir no relento ou pegar uma chuva?”, fala.
O medo da violência de um despejo forçado é também grande. Augusto chora com o que pode acontecer. “Daqui a pouco, a hora que vocês forem embora, nós vamos apanhar? Por que nós temos que apanhar? Por um prato de comida?”. Ele dorme ali todos os dias e também trabalha no local. A partir das 5h30, começa a descascar aipim ou ervilha para feirantes. Questionados por uma advogada popular que foi ao local, os guardas municipais justificaram que portavam a arma pois estavam em um estádio e se dirigiram ao mercado público após denúncia de baderna.
A nutricionista Manoela Lorenzi, que estava na região junto com um grupo de voluntários que distribui alimentos periodicamente à população em situação de rua, discorda da versão. Segundo ela, quando chegaram ao Mercado Municipal perceberam uma maior movimentação da policia, bastante agressiva. “Quando a gente chegou pra conversar com eles, pra saber o que estava acontecendo com a Guarda Municipal, a gente soube que estavam bem dispostos a tirar o pessoal daqui, dizendo que ninguém vai dormir aqui à noite”.
A FAS foi acionada por ligação para o número 156, de resgate social. Apesar da indicação de que um carro iria até o local, não apareceu na noite do domingo. Em diálogo com advogados populares e com a Defensoria Pública, a Guarda Municipal garantiu que não retiraria as pessoas à força do local. No entanto, a população em situação de rua deve sair quando as obras estiverem concluídas, daqui cerca de 20 dias.
Direitos violados
Defensores públicos do estado também foram ao Mercado Municipal. A defensora pública Camille Vieira da Costa, que atua na área cível e da Fazenda Pública, destaca que as pessoas que estão no local têm o direito de ir, vir e permanecer nos espaços públicos. “O que mais nos gera desconforto é pensar que a Guarda Municipal, ligada à prefeitura, à municipalidade, está aqui para garantir a instalação das grades para impedir que as pessoas durmam aqui quando também faz parte de uma política municipal garantir a assistência social a essas pessoas”, avalia. “Não é o local adequado? Não é, mas é melhor do que ficar ao relento”.
Advogada popular da organização de direitos humanos Terra de Direitos, que acompanhou o caso, Alice Correia Assis também critica a falta de propostas efetivas para acolhimento dessas pessoas. Para ela, o despejo da população em situação de rua de uma área central reflete a opção por uma política de higienização social. “A ação no mercado ontem reflete, mais uma vez, os interesses e propostas de uma prefeitura totalmente descolada dos direitos sociais” destaca. “A expulsão das mais de 100 pessoas em situação de rua das marquises do mercado, sem uma política de acolhimento que preveja uma solução alternativa de moradia para elas, demonstra de forma intensa o contexto de marginalização, esquecimento, invisibilização e, ainda, criminalização dessa população, que se vê forçada a procurar abrigo noturno em outros lugares”. O município deve ser questionado sobre o caso e deve apresentar alternativas para a retirada das pessoas de uma área central.
Assistência Social
Ao ser contatada, a assessoria da FAS comunicou que mutirões de cadastramento das pessoas que procuram se abrigar em torno do mercado estão sendo realizados desde agosto. Segundo informações, há vagas suficientes nos equipamentos públicos para acolher essas pessoas. Existem 1.028 vagas em equipamentos públicos e conveniados e cerca de 1.660 pessoas em situação de rua em Curitiba, mapeadas pelo Cadastro Único. No entanto, o Movimento Nacional da População em Situação de Rua (MNPR) aponta que esse número é ainda maior, pois muitas pessoas não estão cadastradas.
O defensor público Antonio Barbosa de Almeida questiona a legitimidade de gradear um espaço frequentado pela população em situação de rua, mesmo que haja vagas no serviço de acolhimento. “É necessário se questionar por que as pessoas estão preferindo não aderir a essa política pública disponibilizada pelo município e preferem ficar aqui ao relento”, aponta.
* A identidade das fontes será preservada para evitar possíveis retaliações
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Ações: Direito à Cidade
Eixos: Política e cultura dos direitos humanos