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“O governo está se fazendo de surdo”: projeto da Ferrogrão avança sem diálogo com indígenas


O que a manifestação de indígenas Kayapó, em Novo Progresso (PA) revela sobre a obra

Indígenas reivindicam respostas do governo sobre renovação Plano Básico Ambiental da pavimentação da BR-163 e consulta prévia no projeto de Ferrogrão / Instituto Kabu/Divulgação

Cinco dias de manifestações sem que o governo federal tenha estabelecido qualquer tipo de diálogo revoltam indígenas Kayapó Mekragnotire, que desde segunda-feira (17) bloqueiam o trânsito na BR 163, no município de Novo Progresso (PA). Entre diversas denúncias - inclusive a da falta de apoio ao enfrentamento da Covid-19 - os indígenas exigem que sejam previamente consultados sobre o projeto da Ferrovia EF-170 - mais conhecida como Ferrogrão - como determina a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

Iniciado em 2012 com o Programa de Investimentos em Logísticas (PIL), o projeto da Ferrogrão tem avançado, principalmente, desde 2016 com a realização de estudos técnicos. São previstos 932 km de trilhos que ligarão a cidade de Sinop (MT) a Itaituba (PA), para escoamento de grãos produzidos na região Centro-Oeste até o distrito portuário do Tapajós, no distrito de Miritituba. A ferrovia deve seguir o traçado da BR 163 – que liga Cuiabá (MT) a Santarém (PA) – e afetará ao menos 48 áreas protegidas, entre Unidades de Conservação e Terras Indígenas.

Apesar do impacto direito em territórios indígenas,  nenhum povo já foi previamente consultado sobre o projeto. O direito à uma consulta prévia está previsto na Convenção 169 da OIT, um tratado internacional que estabelece que indígenas, quilombolas e povos tradicionais sejam previamente consultados sobre a possibilidade de obras ou medidas administrativas que impactam seus territórios e seus modos de vida.

“O governo, para fazer um projeto grande, ele nunca consulta a população indígena”, denuncia Mydjere Kayapó, Vice-Presidente do Instituto Kabu, uma organização que reúne 11 aldeias das terras indígenas Baú e Mekrãgnotire. 

Enquanto ignora as reivindicações, o governo buscou na justiça o encerramento do bloqueio. Já no primeiro dia de protesto, a Advocacia Geral das União (AGU) pediu à Justiça Federal a reintegração de posse. A liminar foi concedida no mesmo dia.

Os indígenas prometem resistir a uma ordem de desobstrução e criticam o fato de a União não ter enviado nenhum representante para dialogar com o movimento. Em setembro de 2019, garimpeiros ilegais fecharam a BR-163 para protestar contra operações do Ibama que desmontaram um garimpo ilegal dentro da Floresta Nacional do Tapajós. A rodovia permaneceu bloqueada durante cinco dias, sem que houvesse judicialização para a reintegração de posse. Após os protestos, representantes dos garimpeiros foram recebidos pelo ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, em Brasília.

Sem consulta

Essa não é a primeira vez que os indígenas exigem ser consultados. Em maio de 2017, o povo Kayapó Mekragnotire enviou um ofício ao Ministério de Transportes, Portos e Aviação Civil solicitando  a realização da Consulta Prévia, Livre e Informada sobre a obra da ferrovia. O direito de consulta foi mais uma vez cobrado no mesmo ano por indígenas Kayapó e Munduruku do Médio Tapajós em ofícios enviados para a Agência Nacional de Transporte Terrestre (ANTT), o órgão responsável pelo planejamento do empreendimento.

Durante uma audiência pública realizada em Brasília em dezembro de 2017, a ANTT se comprometeu a realizar a Consulta Prévia, Livre e Informada com o povo Kayapó antes que o projeto fosse encaminhado para análise do Tribunal de Contas da União (TCU),  último passo para a liberação da concessão e construção da Ferrogrão. No entanto, o projeto foi enviado ao TCU em julho, sem que nenhuma etapa do processo de consulta tenha sido iniciada.

Segundo Mydjere Kayapó, o governo alega que não realizou a consulta prévia pois os estudos indicam que as Terras Indígenas Baú e Mekrãgnotire – distantes 50 km do local onde deve passar a Ferrogrão – não serão impactadas. “A gente sabe que vai sentir os efeitos [da ferrovia], como aconteceu com a BR 163”, conta. Segundo ele, a construção da rodovia despertou o interesse de fazendeiros, sojeiros e madeireiros na região. “A plantação de soja está no limite das nossas terras”, relata. “Se a ferrovia estiver pronta, vai chamar mais ainda esses fazendeiros que podem invadir nossas terras. E esses empresários não desmatam 2 ou 3 alqueires para plantar soja, eles desmatam mais de mil”, reforça.

A cidade de Novo Progresso, onde acontece a manifestação dos Kayapó, foi palco das intensas queimadas na Amazônia registradas em 2019. Uma articulação de fazendeiros no entorno da BR 163 foi responsável por organizar o ‘Dia do Fogo, em agosto do ano passado.

Os indígenas também sabem das dificuldades de garantir medidas de reparação caso a obra se concretize. Uma das principais reivindicações no protesto que bloqueou a BR-163 nesta semana é a renovação da compensação pelos impactos do asfaltamento da BR-163. Uma das condicionantes de compensação é o Plano Básico Ambiental, que financia medidas de monitoramento dos territórios e de combate ao desmatamento. O PBA deveria ser renovado em janeiro deste ano.

Ao mesmo tempo, os indígenas também têm suas dificuldades acentuadas em meio à pandemia. Os Kayapó denunciam a falta de testes rápidos e de profissionais da saúde indígena nas aldeias. (leia a Carta do Povo Kayapó)

 A ausência  de uma política de enfrentamento à Covid-19 entre indígenas já vitimou ao menos 698 indígenas e atingiu 155 povos, em todo o país, segundo dados da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB).

Falta de diálogo

A falta de diálogo e de participação popular nos debates em relação à Ferrogrão permeiam todo o processo da obra. O governo tem se utilizado de instrumentos como audiências públicas – previstas em lei -  para alegar que avança em diálogo com as comunidades locais.

O resgate do processo de planejamento da obra, no entanto, revela as arbitrariedades em volta do empreendimento. A primeira audiência pública para apresentação do estudo de viabilidade técnica da Ferrogrão no Tapajós estava prevista para ser realizada no dia 4 de dezembro de 2017, na cidade de Itaituba (PA). A atividade foi suspensa após os protestos dos indígenas Muduruku, que bloquearam as ruas que davam acesso ao local da audiência, para reivindicar que fossem previamente consultados sobre todos os processos do projeto. Mesmo sem a realização da audiência, em janeiro de 2019 a ANTT aprovou o relatório final da atividade, para avançar na obra.

O relatório foi suspenso pela Vara Criminal e Cível da Subseção Judiciária de Itaituba, que determinou a realização de uma nova audiência pública. A decisão fez parte de uma Ação Civil Pública (ACP) movida pela Associação Comunitária São Francisco de Assis para suspender os efeitos da deliberação colegiada da ANTT.

Uma nova audiência foi realizada em setembro de 2019, em Itaituba, e em seguida no município de  Novo Progresso. O modelo de debate, no entanto, não dialoga com as comunidades locais. Durante a audiência realizada em Itaituba, a liderança de Miritiruba, Ivaneide Rodrigues destacou que o modelo proposto pela ANTT é “excludente”. “Esse projeto impacta milhares de pessoas e aqui não tem 1% delas. E não tem, porque a vinda delas tem um custo”, criticou. Na atividade, ela também denunciou a falsa promessa de melhorias trazidas pela obra para o estado. “Essa região clama por desenvolvimento, mas não esse desenvolvimento que engessa quem é daqui e que beneficia apenas quem é do Mato Grosso. Não se pode discutir desenvolvimento dessa maneira”.

Em 2017, o  Ministério Público Federal de Itaituba/PA recomendou à ANTT a obrigatoriedade de garantir o processo de consulta prévia aos povos indígenas e tradicionais da região antes da realização das audiências.

A indígena Alessadra Korap, do Povo Munduruku, também sabe que há muito por trás da proposta de uma ferrovia ligando o Centro-Oeste ao Pará. Ela não se engana quando dizem que a Ferrogrão não deve afetar os territórios Munduruku. “Todos esses projetos chamam outros. Depois que constroem a ferrovia constroem portos, e em seguida vão construir uma usina hidrelétrica para fornecer energia para essas empresas que estão sendo instaladas no Tapajós”, destaca.

As tentativas de diálogo com o governo também não estão tendo resultado. “O Governo está se fazendo de surdo”, denuncia. “Se fosse um povo que quer explorar uma terra para garimpo ou fazenda, aí governo ia apoiar. Mas quando é um povo que quer defender o território, o governo finge que não escuta”. Para ela, toda pessoa que vive na Amazônia deve apoiar mobilizações que questionam o processo com que está sendo conduzida a Ferrogrão, como a manifestação feita pelo povo Kayapó e outras já realizadas pelos Munduruku.

“Se eles saem das suas casas, deixam seu rio, sua pescaria, sua roça, e vão para Brasília ou ficam na BR embaixo de sol quente, é porque não estão sendo ouvidos”.

Para o advogado popular da Terra de Direitos, Pedro Martins, é preciso agora enfrentar no Tribunal de Contas da União que um empreendimento como a Ferrogrão não tem viabilidade sem consulta prévia, livre e informada. “É obrigação do Governo Federal atender as demandas da sociedade civil organizada, em especial dos povos indígenas, para garantir diálogo. A manifestação dos povos indígenas na BR 163 é legítima e deve ser destacada, já que o Governo Federal requer a criminalização do protesto com a aplicação de multa aos manifestantes. Por outro lado o mesmo Governo ignora as ameaças da Ferrogrão e da própria BR 163 aos povos indígenas”, aponta.

Sobre o empreendimento

A Ferrogrão completa o conjunto de obras de infraestrutura para escoamento de grãos que fazem parte do chamado Plano Arco Norte. Além da ferrovia, estão previstas a construção de hidrovias, portos e o término da pavimentação da rodovia BR 163.

Para que seja concretizada, a obra se dará pelo modelo de investimento Greenfield – ou seja, um investimento em um projeto que está ainda no papel e que precisa de recursos do investimento para iniciar as obras – a um custo estimado de R$ 12,7 bilhões, com concessão para exploração durante 65 anos.

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A estimativa é a Ferrogrão tenha capacidade para escoar 58 milhões de toneladas de grãos por ano. Os grãos como soja e milho devem ser exportados para China e países da Europa. “Os países de primeiro mundo têm sangue indígena nas mãos, e sempre vão ter, porque eles são compradores desse modelo”, lamenta Alessandra.

O Plano de Concessão de Outorga da concessão da Ferrogrão foi aprovado pela ANTT no dia 10 de julho de 2020. Agora, aguarda-se análise do Plano por parte do TCU.



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