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Contra a normalização da fome, organizações produzem marmitas para população de rua de Curitiba desde março


Mesmo com determinação judicial, o fornecimento gratuito de refeições pelo poder público da capital para a totalidade da população em situação de rua durante a pandemia não tem sido cumprido.

Foto: arquivo Mãos Invisíveis
 

A intensificação da insegurança alimentar de um grande contingente da população em situação de rua de Curitiba (PR) é uma preocupação crescente para organizações sociais e movimentos de defesa dos direitos desta população. No dia 18 de dezembro o coletivo que produz e entrega diariamente marmitas na capital paranaense, desde 21 de março, deve cessar a produção das refeições.

A iniciativa que busca suprir uma lacuna de fornecimento de alimentos pela Prefeitura de Curitiba entrega diariamente entre 300 a 350 marmitas para população em situação de rua ou mesmo famílias que tiveram uma piora das condições econômicas em razão da crise. Com fechamento de restaurantes, dificuldade de trabalhos esporádicos e diminuição das doações de alimentos esta população – em crescimento - pode ter seu contexto de insegurança alimentar agravado.

Isto porque, passados mais de 09 meses da confirmação do primeiro caso de Covid-19 na capital, a Prefeitura de Curitiba não implementou, até o momento, um ação que garanta o fornecimento gratuito e contínuo de alimentação saudável para a totalidade da população em situação de rua.

De acordo com os movimentos populares, são entregues 150 refeições gratuitas na Praça Plínio Tourinho e 200 no restaurante popular no Capanema pela iniciativa Mesa Solidária, iniciativa no qual a Prefeitura entra apenas com a cessão do espaço público (como restaurantes) e organizações e instituições adquirem, preparam e servem os alimentos. A conta total das refeições entregues nos restaurantes populares, no entanto, está distante do contingente populacional da população em situação de rua, estimada em 5 a 7 mil pessoas pelos movimentos populares.

Foto: arquivo Mãos Invisíveis

Determinação judicial
Ainda que a Justiça do Paraná tenha acatado parcialmente, no dia 24 de julho, os pedidos feitas pelas Defensorias Públicas do Estado e União em uma Ação Civil Pública (ACP) ajuizada pelos órgãos no início de maio, determinando que o município garanta alimentação gratuita à população em situação de rua, inclusive nos restaurantes populares, entre outras medidas, os movimentos e organizações que atendem esta população relatam que as demandas não foram implementadas, mesmo com determinação judicial.

“A Defensoria Pública do Estado do Paraná e a Defensoria Pública da União, recentemente, apontaram nos autos o descumprimento da decisão judicial pelas partes demandadas. Na ocasião, noticiou-se que, em duas visitas in loco, foi possível verificar que as refeições não estavam sendo fornecidas gratuitamente nos restaurantes populares à população em situação de rua, embora o Município alegue não lhe ter sido imposta essa obrigação”, aponta o defensor público e coordenador do Núcleo da Cidadania e Direitos Humanos (Nucidh) da Defensoria Estadual, Julio Salem Filho.

Para a coordenadora da organização Mãos Invisíveis e uma das responsáveis pela produção das marmitas, Vanessa Lima, não surpreende a alegação do município de que não foi obrigado a disponibilizar a alimentação gratuita para este contingente. Ela relata que tem sido recorrente, não apenas na pandemia, uma postura dos órgãos públicos de transferência de responsabilidades entre eles, quando são acionados pela sociedade.

“É um jogo. Quando a gente foi exigir diretamente alimentação para a Fundação Social (FAS) eles falaram que isso é problema de Secretaria de Segurança Alimentar ou da de Abastecimento. Já as Secretarias falam que dependem da FAS. Ninguém pega para responder”, aponta Vanessa. Em agosto e setembro as organizações realizaram um conjunto de manifestações em frente à Prefeitura para reivindicar a adoção de medidas protetivas. Não foram escutados pelo prefeito ou demais representantes, relatam.

A ausência de uma ação conjunta, entre os diferentes órgãos públicos, implica em prejuízo direto no desenvolvimento de medidas de proteção à população em situação de rua - ainda mais grave no contexto de pandemia, em razão da natureza intersetorial desta política, aponta ela.  Presente em várias normativas, a responsabilidade dos municípios em desenvolver planos intersetoriais para garantir a alimentação, de modo contínuo, para a população em situação de rua é novamente reforçada na Resolução 40 do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), publicada em outubro desde ano.

O defensor Julio ainda pontua que as Defensorias do Estado e da União requerem, junto ao Tribunal de Justiça, que seja fixada uma multa ao poder público caso a Prefeitura de Curitiba siga sem fornecer alimentação gratuita para o conjunto da população em situação de rua. O órgão ainda aguarda posicionamento judicial sobre o pedido.

Para a assessora jurídica da Terra de Direitos, Daisy Ribeiro, a rápida resposta do sistema de justiça ao requerimento é importante para suspender o contexto de violação de direitos humanos vivido pela população em situação de rua. “Sempre que há violação de direito humano e estes direitos não são garantidos pelo Executivo, o Judiciário pode ser acionado para questionar a Executivo e em situações como essa deve-se dar resposta com a urgência devida”, destaca.

Foto: arquivo Mãos Invisíveis

Produzir alimento para amenizar a fome
A produção das marmitas pelas organizações e movimentos de defesa da população em situação de rua passou por distintos momentos durante os mais de 9 meses de pandemia. Da fase inicial, de reconhecimento da imobilidade do poder público e urgência de produção de refeições pela sociedade, da estruturação da cozinha no Sindicato dos Correios, passando pelas doações em maior volume nos primeiros meses e queda progressiva no transcorrer do ano.

Houve também uma mudança nas mãos que cortam, cozinham, embalam e entregam as refeições pelas praças -  trabalho voluntário que já envolveu estudantes, movimentos, pesquisadores, universidade e hoje é majoritariamente composto pelas próprias pessoas em situação de rua. O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) também soma toda quarta-feira, com fornecimento de marmitas entregues em vários pontos do centro da capital.

Além de desenvolver capacidades, a necessária produção e entrega das refeições permitiu uma experiência crítica às pessoas envolvidas - de avaliação do papel do Estado, de escuta às demandas das pessoas em situação de rua na capital e compreensão das realidades. “A cozinha serviu como inspiração pra se que consolide uma experiência de um lugar de encontro da militância, de geração de renda e de entendimento das necessidades do povo”, pontua Vanessa.

Lugar que sempre se volta ao reconhecimento dos direitos historicamente negligenciados à esta população. “A gente fala sobre direito à alimentação e não esse direito não foi garantido em nenhum momento.  Assim como as mortes tem sido normalizadas durante a pandemia, a fome também foi”, lamenta Vanessa. “Todo período de pandemia, todo medo da sociedade que a pessoas tinham de serem contaminados, todo esse tempo a população em situação de rua viveu e vive em extrema vulnerabilidade, um pouco amenizada pelas iniciativas solidárias e ação da Defensoria, por exemplo. O que aconteceu na pandemia foi escancarar um problema histórico de falta de acesso à alimentação, higiene e demais direitos básicos”, complementa.

“Só existe essa cozinha porque o município não faz a parte dele e muitos restaurantes continuam fechados. Muita gente não doa por medo de pegar a Covid, principalmente com a 2ª onda. Essas pessoas [a população em situação de rua] são vidas, são seres humanos que estão nas marquises, nas praças e precisam de alimentação saudável. Infelizmente a gente está gritando para manter a produção destes alimentos.”, destaca membro da coordenação do Movimento Nacional da População de Rua (MNPR), Leonildo Monteiro. “

O Movimento aponta que desde julho não tem acesso a dados atualizados da manifestação da doença entre a população em situação de rua em Curitiba. Naquele mês a FAS registrou, de 5 de maio a 2 de julho, 101 encaminhamentos para isolamento social de pessoas com suspeita ou confirmação de Covid-19.

 



Ações: Defensores e Defensoras de Direitos Humanos

Eixos: Política e cultura dos direitos humanos