Artigo | Dias Toffoli e a abolição informal e inconclusa do cativeiro da terra quilombola
Fernando Prioste
No mês em que se completaram 322 anos do assassinato de Zumbi dos Palmares, o Ministro do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli, apresentou voto vista nos autos da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3239, quem tem por objeto a discussão sobre a constitucionalidade do Decreto Federal nº 4887/03, que trata dos procedimentos administrativos de titulação dos territórios quilombolas, direito esse garantido no art. 68 do ADCT da Constituição Federal de 1988.
A ação foi proposta em 2004 pelo então Partido da Frente Liberal (PFL), hoje Democratas (DEM), e até o momento conta com três votos. Na sessão de 18 de abril de 2012, em que se iniciou o julgamento, o Relator Ministro Cezar Peluso votou pela procedência total da ação, apontando haver inconstitucionalidade formal e material no decreto. Nessa ocasião, a Ministra Rosa Weber pediu vista dos autos, que só vieram a julgamento novamente em 25 de março de 2015, com o voto vista da Ministra pela improcedência total da ação, momento em que o Ministro Dias Toffoli se adiantou aos colegas que votariam antes dele, e pediu vistas.
Retomado o julgamento na sessão de 9 de novembro de 2017, o Ministro Dias Toffoli votou pela procedência parcial da ação, sendo que logo após proferir seu voto o Ministro Edson Fachin fez novo pedido de vistas. O reinício do julgamento está sinalizado para o dia 8 de fevereiro do próximo ano.
Em seu voto o Ministro Dias Toffoli aplicou a tese que se convencionou chamar de "marco temporal", ao afirmar que o direito constitucional quilombola à terra se resumiria a reconhecer às comunidades a propriedade das terras que estivessem efetivamente ocupando em 5 de outubro de 1988. Ou seja, só seriam tituladas às comunidades as terras que estivessem sendo utilizadas por quilombolas no ano em que se completou um século da abolição formal e inconclusa da escravidão.
O efeito prático do voto do Ministro Dias Toffoli, se prevalecesse ante aos demais Ministros e Ministras, seria a impossibilidade de titular às comunidades quilombolas as terras de ocupações tradicionais, necessárias à sobrevivência digna das comunidades. Assim, seriam tituladas apenas pequenas porções de terras a cada quilombo, impossibilitando às comunidades reverter, por meio do direito, o processo secular racista de exclusão das comunidades negras rurais quilombolas do acesso à terra.
Muitas análises[1] foram feitas sobre os votos apresentados pelo Ministro Cesar Peluso e pela Ministra Rosa Weber, que ofereceram compreensões divergentes sobre o conteúdo do direito previsto no art. 68 do ADCT da Constituição. Este texto tem por objetivo sistematizar algumas reflexões introdutórias sobre o voto apresentado pelo Ministro Dias Toffoli, de modo a contribuir com o amplo debate que se faz, sob o olhar de várias áreas do conhecimento, sobre o direito constitucional quilombola à terra previsto no art. 68 do ADCT da Constituição Federal de 1988, bem como sobre o conteúdo e a forma do Decreto Federal nº 4887/03.
Antes de analisar o voto do Ministro Dias Toffoli cumpre observar que em 2003, quando o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva ocupava a Presidência da República, foi editado em 13 de maio decreto não numerado que teve como objetivo constituir um grupo de trabalho para analisar o Decreto Federal nº 3912/01, que até então regulamentava o procedimento administrativo de titulação das terras quilombolas.
O referido grupo de trabalho teve como missão "a proposição de ações estratégicas que assegurem a sua identidade cultural de remanescente de quilombos e a sustentabilidade e integração das comunidades quilombolas no processo de desenvolvimento nacional", propondo "nova regulamentação ao reconhecimento, delimitação, demarcação, titulação, registro imobiliário das terras remanescentes de quilombos".
Naquele momento histórico o Ministro Dias Toffoli integrou o GT representando a Casa Civil da Presidência da República, sendo que ao fim dos seus trabalhos o GT propôs ao Presidente da República os termos do atual Decreto Federal nº 4887/03. Ou seja, quatorze anos após ter trabalhado no GT que construiu o decreto em referência, o Ministro Dias Toffoli, agora como Ministro do Supremo Tribunal Federal, analisa a constitucionalidade do instrumento normativo que ajudou a criar.
Posteriormente, no ano de 2008, quando o Ministro Dias Toffoli ocupava o cargo de Advogado Geral da União (AGU), determinou que o INCRA realizasse alterações na Instrução Normativa nº 16, que até aquele ano dispunha sobre o processo administrativo de titulação das terras quilombolas no âmbito da autarquia agrária, uma vez que o Decreto Federal 4887/03 outorgou a tal órgão a missão de titular as terras quilombolas.
Assim, por determinação do então Ministro da AGU, o INCRA publicou nova regulamentação do processo administrativo de titulação, que hoje é regulado pela Instrução Normativa do INCRA nº 57. Naquela época a AGU, portanto o Ministro Dias Toffoli, justificou a necessidade de alteração da instrução normativa do INCRA para defender a constitucionalidade do Decreto Federal nº 4887/03 junto ao STF, através de um suposto aprimoramento de seus dispositivos. Contudo, o resultado prático dessa ação foi a burocratização excessiva do trabalho do INCRA, com o aumento da lentidão e dos custos da tramitação dos processos administrativos de titulação, sem qualquer consequência significativa para o julgamento da constitucionalidade do decreto no STF. Nem mesmo o próprio Ministro dias Toffoli citou qualquer dispositivo da instrução normativa do INCRA para sustentar a constitucionalidade do decreto.
Assim, muito antes de tomar contato com a matéria no Supremo Tribunal Federal, o Ministro Dias Toffoli já havia atuado diretamente na construção originária do Decreto Federal nº 4887/03, bem como na alteração das normas administrativas do INCRA no tema. Essa situação causa estranheza pelo fato do Ministro Dias Toffoli não ter se declarado suspeito para julgar a constitucionalidade do decreto que ele mesmo ajudou a construir, e talvez se explique pelo fato de no passado, quando da elaboração da minuta do decreto em 2003, o Ministro Dias Toffoli ter ficado vencido nos debates, justamente no ponto em que julgou procedente a ADI 3239, como relatam quilombolas que participaram do GT que elaborou a minuta de decreto.
Ao que tudo indica o Ministro Dias Toffoli quis fazer valer no STF a visão que tinha em 2003, quando foi superado na elaboração da minuta do Decreto Federal nº 4887/03. No passado a autoridade do argumento não foi suficiente e hoje, como Ministro do STF, o argumento da autoridade parece ser o fundamento maior de seu voto, que apresenta severas contradições internas e não enfrenta as principais questões colocadas por aqueles que sustentam a constitucionalidade integral do decreto.
Com o objetivo de realizar uma análise crítica sobre o voto do Ministro Dias Toffoli é pertinente dividi-lo em duas partes: uma em que adota as premissas daqueles que sustentam a constitucionalidade formal e material do decreto em estudo, e outra em que, de forma contraditória, adota pressupostos daqueles que advogam pela inconstitucionalidade do conteúdo do Decreto Federal nº 4887/03, para assim justificar o voto pela procedência parcial da ação. A análise dessas contradições internas presentes no voto do Ministro é o principal aspecto a ser destacado neste texto.
No primeiro momento de seu voto o Ministro Dias Toffoli parecia caminhar para concluir pela improcedência total da ADI 3239, pois citou por diversas vezes as concepções jurídicas, sociológicas e antropológicas que ao longo dos anos autores como Girolamo Domenico Treccani, Dalmo Dallari, Lúcia Andrade, Alfredo Wagner Berno de Almeida e Carlos Ari Sundfeld, como também a Associação Brasileira de Antropologia, sustentaram para afirmar que as comunidades quilombolas têm direito à titulação de suas terras tradicionais, as necessárias à sobrevivência digna de cada grupo.
Todos os citados, sem exceção, atuam há mais de vinte anos pela garantia de titulação das terras tradicionalmente ocupadas pelos quilombolas, terras essas necessárias para a reprodução física, social e cultural das comunidades por seus próprios meios, respeitando seus aspectos socioculturais, sem sequer cogitar a possibilidade de aplicação da tese do marco temporal. Todos, sem exceções, refutam explicitamente a aplicação da tese do "marco temporal".
Nesse primeiro momento de seu voto o Ministro sustentou que os arts. 215 e 216 da Constituição, assim como a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, levam à conclusão de que o direito previsto no art. 68 do ADCT da Constituição busca "reparar uma dívida histórica decorrente da injustiça secularmente praticada contra os negros desde o período escravocrata brasileiro. Trata-se de reparação concretizada no reconhecimento dos direitos de descendentes das comunidades dos antigos escravos à propriedade das terras por eles historicamente ocupadas".
É sob tal premissa que o Ministro refuta a tese defendida pelo DEM, e presente no voto do Min. Cesar Peluso, de que só teriam direito à terra as comunidades que provassem ocupar determinada porção de terras de 1888, data a abolição formal e inconclusa da escravidão, a 1988, data da promulgação da Constituição, uma vez que "inviabilizaria, ainda, o cumprimento do comando constitucional, pois seria difícil a sua comprovação."
Acompanhando os já citados autores, o Ministro entende ser constitucional o critério da autoatribuição da identidade coletivas pelas comunidades quilombolas, e o faz citando também a Convenção 169 da OIT, afirmando que tal marco normativo é aplicável às comunidades quilombolas.
A referência do Ministro Dias Toffoli à Associação Brasileira de Antropologia (ABA) e aos autores já acima citados, bem como aos art. 215 e 216 da Constituição Federal de 1988 como arcabouço jurídico conectado ao reconhecimento dos direitos dos quilombolas, se resume a esse momento introdutório do voto, e parece não ter qualquer relação com o ponto central do reconhecimento do direito, ou seja, o acesso à terra. Esses fundamentos, portanto, se aplicam para a definição do conceito de comunidades quilombolas, para sustentar o direito à autoatribuição da identidade quilombolas e para afastar o "marco temporal" referente a 1888, mas não se prestam a sustentar, com faz a ABA, a obrigação de titulação das terras tradicionais quilombolas integralmente.
A segunda parte do voto o Ministro Dias Toffoli inicia desprestigiando o direito quilombola em função de estar positivado no ato das disposições constitucionais transitórias, a saber:
De início, é importante destacar a posição topográfica do art. 68 do ADCT, o qual, diversamente dos arts. 215, 216 e 231 da Constituição Federal, foi inserido no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, não se podendo atribuir a essa disposição transitória a mesma extensão normativa dos princípios constitucionais consagrados no texto definitivo da Constituição, por se tratar de comando transitório e excepcional destinado a solucionar situação verificada ao tempo da promulgação da Carta.
Já neste trecho se observa que para o Ministro os art. 216 e 215 da Constituição parecem não ter relação alguma com o sentido e o alcance do direito à terra previsto no art. 68 do ADCT da Constituição. Ou seja, tais artigos servem para balizar a interpretação constitucional de quem são os beneficiários do direito, para respaldar o direito à autoatribuição, mas não se prestam a respaldar a interpretação da extensão do direito à terra, núcleo central do dispositivo.
Ademais, o Ministro desmerece o direito quilombola pelo fato de estar positivado no ADCT da Constituição, mas não se dá ao trabalho de analisar o processo constituinte e compreender o motivo de tal alocação, nem mesmo trata de explicitar que essa alocação é parte do ainda persistente racismo institucional contra quilombolas.
Uma análise detida do processo constituinte nos mostra que foi o Movimento Negro que através da Sugestão nº 2.886 encaminhou formalmente à Assembleia Nacional Constituinte a proposta de garantia de acesso à terra para comunidades quilombolas. Sugestão essa que não alcançou o número mínimo de assinaturas necessárias, e passou a integrar as propostas constituinte através da Sugestão n° 9.015, apresentada pela Deputada Benedita da Silva.
Após debate e aprovação do texto na Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias o direito quilombola integrou o capítulo denominado "Negros" do anteprojeto, sem que houvesse qualquer tópico referente a disposições transitórias, pois cada proposta aprovada estava acondicionada no capítulo correspondente ao tema em debate na subcomissão.
Foi apenas após a junção dos vários textos apresentados nas subcomissões que integrariam a Comissão da Ordem Social que o direito quilombola passou a integrar o ADCT do anteprojeto de Constituição. Frise-se que nesse momento do processo constituinte cada capítulo contou com uma seção de disposições transitórias, não sendo, assim, uma exclusividade do direito quilombola à terra estar proposto nesse dispositivo do projeto provado.
Após às aprovações dos textos nas diversas comissões da Assembleia Nacional Constituinte, os mesmos foram reunidos em um corpo único na Comissão de Sistematização, cujo texto foi apresentado em julho de 1987, denominado neste momento de Anteprojeto da Comissão de Sistematização. Nessa oportunidade o direito constitucional quilombola à terra foi acondicionado no Título X, denominado de Disposições Transitórias.
Tal situação se deu por ter desaparecido do anteprojeto de Constituição o capítulo dos negros, remanescendo o direito quilombola à terra no ADCT, por não haver um capítulo especifico para abrigar o referido artigo. Fundamental destacar que os pleitos da população negra passaram a permear todo o texto constitucional, como se vê já explicitamente no art. 1º, III, e no art. 3º IV[2].
No mais, não se pode deixar de levar em conta que em um país como o Brasil, onde o racismo é base que estrutura as relações sociais e a ação de Estado, não seria de se estranhar que um direito tão essencial a negros e negras tenha sido alocado nos dispositivos finais da Constituição. Essa realidade racista vivida cotidianamente pela maioria da população brasileira como opressão deve ser levada em conta pelos intérpretes do direito, notadamente pelos Ministros do Supremo Tribunal Federal, para dar máxima eficácia ao dispositivo, e não para desmerecer a conquista jurídica do movimento negro, e retirar força normativa do direito conquistado com séculos de lutas contra o racismo.
Mas não foi apenas desmerecendo a alocação do direito quilombola entre os diversos capítulos da Constituição que o Ministro Dias Toffoli buscou limitar, severamente, a aplicação do direito quilombola. Como se vê abaixo, o Ministro se esqueceu das teses sustentadas pelos juristas, antropólogos e sociólogos que citou na introdução de seu voto para basear sua concepção política e jurídica em uma interpretação supostamente literal do texto da constituição, a saber:
Já adianto que não se trata de uma interpretação meramente literal do dispositivo. Para além de uma interpretação gramatical, busca-se o alcance do direito a partir de uma interpretação igualmente sistemática e teleológica da Constituição. Aqui, no meu modo de ver, a interpretação literal não será má conselheira, levando-nos, sim, a um resultado que esses outros métodos recomendam.
Observa-se que Ministro quer dar a entender que baliza seu entendimento sobre o alcance do art. 68 do ADCT no contexto de uma Constituição que preza pelos direitos humanos como valores fundantes. Entretanto, deixa explícito que é a literalidade descontextualizada do todo constitucional, mas principalmente da realidade vivida pelas comunidades quilombolas, que guia suas conclusões. Não fosse assim, e a valer a prevalência dos direitos humanos, do enfrentamento ao racismo, da eliminação da pobreza, da marginalização social e da redução das desigualdades econômicas, não haveria espaço para sustentar que o direito constitucional quilombola não se presta a garantir às comunidades condições dignas de existência.
Essa interpretação do voto do Ministro se ancora na observação de que na visão de Dias Toffoli as comunidades quilombolas teriam direito apenas às terras que na data da promulgação da Constituição de 1988 estivessem sob seus domínios, independente da extensão dessas posses servir ou não para garantir, minimamente, vida digna a quem vive e trabalha no campo, como se observa do trecho abaixo:
Não foram estabelecidos limites máximos ou mínimos para a titulação, mas a locução verbal “estejam ocupando suas terras”, contida no texto constitucional, acaba por delimitar o aspecto temporal do direito, reconhecendo uma ocupação presente, não passada, e, como veremos a seguir, nem futura.
É notório que não há comunidades quilombolas que detenham a posse de grandes extensões de terras sem que para tanto tenham conquistado, com base no Decreto Federal 4887/03, a titulação das terras que tradicionalmente ocupam, como no caso do quilombo dos Kalunga, em Goiás. Nesse sentido, a afirmação do Ministro Dias Toffoli de que não há limites máximos e nem mínimos para a titulação de terras quilombolas tem forte traço de opressão racial, pois em verdade não garante, sabidamente, a qualquer comunidade a titulação de grandes porções de terras, mas apenas limita a titulação às ínfimas porções de terras que, com muita luta e sem qualquer apoio do Estado, as comunidades utilizavam efetivamente em outubro de 1988.
Ademais, as interpretações sistêmicas e finalísticas da Constituição Federal para à expressão "que estejam ocupando suas terras" estão a indicar que onde não houver a presença de comunidades quilombolas, não há de se falar em reconhecimento de direitos à terra. Situação essa que se aplica hoje, por exemplo, à Serra da Barriga, local que notoriamente abrigou o quilombo de Palmares, e que hoje não conta com a presença de qualquer comunidade quilombola. Assim, pela interpretação do texto constitucional, não há que se falar em titulação das terras do quilombo dos Palmares a quem quer que seja, pois não há efetivamente nenhuma comunidade ocupando aquelas terras.
O comando constitucional do art. 68 do ADCT preconiza que identificando o Estado brasileiro a existência de uma determinada comunidade quilombola, em uma determinada região, há de se titular as terras tradicionalmente ocupadas e necessárias à sobrevivência digna da comunidade, nem mais, nem menos. Parece óbvia a interpretação de que se existe determinada comunidade quilombola alguma terra estão a ocupar, de forma mais ou menos precária, segundo cada situação vivida. Nessa linha, a titulação não se imita às terras que as comunidades já detinham em outubro de 1988, pois essas áreas efetivamente ocupadas e usadas já tinham sido conquistadas com lutas passadas. A Constituição reconhece o direito às terras efetivamente ocupadas e, principalmente, as de ocupação tradicional que são necessárias à reprodução digna de cada comunidade. Qualquer interpretação fora desse contexto não pode estar agasalhada por uma visão de que o direito quilombola à terra tem relação com a necessidade de buscar a reparação pelos danos do racismo escravocrata que até hoje sustenta relações sociais de cunho colonial.
A fragilidade do argumento do Ministro quanto à interpretação da expressão "que estejam ocupando suas terras" soma-se à fragilidade interpretativa do direito quilombola que o Ministro utilizou, reduzindo o âmbito de aplicação do direito quilombola a partir de uma análise comparativa com o direito dos povos indígenas. Nesse intento afirma o Ministro:
Ocorre, todavia, que, cotejando os textos aplicáveis às terras indígenas e àquelas ocupadas por comunidades quilombolas, verifica-se a presença de divergência quanto aos regimes incidentes a cada uma das espécies, bem como quanto aos efeitos da concessão da titularidade da posse ou do domínio sobre tais glebas.
De saída é necessário afirmar que não existe divergência entre o direito quilombola e indígena à terra. O que há são regramentos distintos, para situações fáticas em muito distintas, que não podem e não devem ser comparadas para fins de interpretação do direito de ambos. Assim, a afirmação do Ministro, logo abaixo transcrita, de que o direito quilombola à terra foi interpretado à luz do que garante a Constituição aos povos indígenas é absolutamente equivocada, pois como bem sabe o Ministro Dias Toffoli em momento algum o Decreto Federal 4887/03 faz esse tipo de comparação:
Ora, Senhores Ministros, não vejo espaço normativo para a interpretação acima mencionada. Em verdade, estenderam-se para a demarcação das terras das comunidades remanescente de quilombos os critérios constitucionais assegurados expressamente pela Constituição Federal às terras indígenas.
A interpretação sobre o conteúdo e extensão do direito quilombola à terra se faz com fundamento na Constituição Federal e na Convenção 169 da OIT, entre outros dispositivos, e não no que a Constituição estabelece com relação aos indígenas. Quem faz essa comparação entre direitos diferentes, para grupos diferentes e que vivem de modos diferentes para assim diminuir o alcance do direito de quilombolas é o próprio Ministro, conforme abaixo exposto:
Por isso, não se pode olvidar que o silêncio constitucional é eloquente, em certa medida, para refletir a diferenciação entre o estatuto protetivo atinente às terras indígenas, previsto no art. 231 da Constituição Federal, e aquele ora discutido.
No mais, necessário reconhecer que antes de haver silêncio Constitucional quanto ao direito quilombola a suas terras há expressa determinação no sentido de conferir direitos. O suposto silêncio comparativo não existe, e é o próprio Ministro Dias Toffoli quem autoriza afirmar que "tanto as terras indígenas como as terras de quilombolas sejam referidas juridicamente como ´terras tradicionalmente ocupadas´," no âmbito da Constituição.
Na visão do Ministro seria a comparação entre os direitos à terra de indígenas e de quilombolas que autorizaria afirmar que aos indígenas se deve garantir o direito às terras necessárias à reprodução de seus modos de vida, não se aplicando aos quilombolas tal interpretação. Na visão do Ministro a Constituição teria condenado as comunidades quilombolas a viver uma situação de opressão secular, pois só teriam direito à pequena porção de terras que efetivamente estavam a utilizar diretamente, num conceito de posse civil, em 5 de outubro de 1988, quando sequer existia direito à terra para as comunidades quilombolas, a saber:
De forma diversa, o art. 68 do ADCT conferiu aos remanescentes das comunidades quilombolas a propriedade definitiva das terras que estivessem ocupando e, com isso, não teve a pretensão de conferir-lhes, como o fez para os indígenas, todas as terras, presentes e futuras, necessárias para suas atividades produtivas, para a preservação dos recursos ambientais, para o seu bem-estar e para a sua reprodução física e cultural.
Em verdade, enquanto, para as terras indígenas, a Constituição adotou os critérios da imprescindibilidade e da necessidade, para os quilombolas, pautou-se pelo critério da ocupação. Dessa forma, não se deve alargar o âmbito de proteção do dispositivo constitucional para inserir em seu alcance o reconhecimento do direito de propriedade às comunidades quilombolas das terras “suficientes e necessárias para o natural desenvolvimento e reprodução de sua cultura e valores”, independentemente do critério de “ocupação” eleito pela Carta Magna. Muito menos se deve ampliar esse direito de propriedade, reconhecido taxativamente no texto constitucional, para possibilitar a ampliação futura dos domínios territoriais.
A par da frágil comparação entre direitos realizada pelo Ministro para desmerecer e reduzir o âmbito de aplicação do art. 68 do ADCT da Constituição, necessário reconhecer que a Convenção 169 da OIT, plenamente aplicável às comunidades quilombolas, estipula que as terras a serem tituladas são de ocupação tradicional, aquelas necessárias à reprodução física, social e cultural, ainda que tais terras não estejam sob posse exclusiva dos quilombolas, a saber:
Artigo 13
1. Ao aplicarem as disposições desta parte da Convenção, os governos deverão respeitar a importância especial que para as culturas e valores espirituais dos povos interessados possui a sua relação com as terras ou territórios, ou com ambos, segundo os casos, que eles ocupam ou utilizam de alguma maneira e, particularmente, os aspectos coletivos dessa relação.
2. A utilização do termo "terras" nos Artigos 15 e 16 deverá incluir o conceito de territórios, o que abrange a totalidade do habitat das regiões que os povos interessados ocupam ou utilizam de alguma outra forma.
Artigo 14
1. Dever-se-á reconhecer aos povos interessados os direitos de propriedade e de posse sobre as terras que tradicionalmente ocupam. Além disso, nos casos apropriados, deverão ser adotadas medidas para salvaguardar o direito dos povos interessados de utilizar terras que não estejam exclusivamente ocupadas por eles, mas às quais, tradicionalmente, tenham tido acesso para suas atividades tradicionais e de subsistência. Nesse particular, deverá ser dada especial atenção à situação dos povos nômades e dos agricultores itinerantes.
2. Os governos deverão adotar as medidas que sejam necessárias para determinar as terras que os povos interessados ocupam tradicionalmente e garantir a proteção efetiva dos seus direitos de propriedade e posse.” (sem destaques no original)
Ou seja, a conjugação de interpretações sistêmicas e finalísticas da Constituição Federal com o texto da Convenção 169 da OIT deixa evidente que o direito quilombola à terra não se limita às terras efetivamente utilizadas pelas comunidades em 5 de outubro de 1988. O que a Constituição garante, e a Convenção 169 da OIT consolida, é um direito à terra que se transporta para a função que a terra tem para as comunidades, que só podem se desenvolver com dignidade se tiverem acesso à terra suficiente para tal.
Ademais, não há qualquer reparação à opressão histórica sofrida pelos quilombolas de ontem e de hoje se o exato momento em que nasce o direito das comunidades quilombolas à titulação de suas terras for, também, o exato momento em que se impõe um limite intransponível e irresponsável quanto à extensão do direito. Ou seja, a Constituição que reconhece pela primeira vez na história o direito quilombola à terra seria, também, o marco que imporia um limite ao exercício do direito à terra. Seria uma espécie de abolição da escravidão aos que já estivessem libertos.
As comunidades quilombolas lutaram por mais de trezentos e cinquenta anos pela abolição da escravidão, que veio sem qualquer tipo de medida compensatória em 1888. Abandoadas pelo Estado brasileiro à própria sorte, as comunidades quilombolas lutaram contra o racismo para sobreviver e, como é de notório conhecimento, até o momento não dispõe das condições materiais necessárias para reprodução digna e seus modos de vida, mesmo tendo conquistado na Constituição Federal de 1988 um direito específico à terra.
Por tais circunstância é inadmissível, para o direito constitucional, a afirmação do Ministro Dias Toffoli de limitar o direito quilombola à terra comparando-o com o direito indígena à terra, como o fez no trecho abaixo:
Há, sem dúvida, diferenças substanciais entre o regime jurídico das terras indígenas e o das comunidades remanescentes de quilombos, a impedir a extensão do regramento contido no art. 231 da Constituição como norma para a definição do alcance da expressão “terras ocupadas” quando aplicada às comunidades quilombolas. Fazer isso seria deferir a essas comunidade o melhor dos dois regimes jurídicos. Ressalte-se
No trecho acima transcrito o Ministro Dias Toffoli dá a entender que as comunidades quilombolas não poderiam, ao mesmo tempo, serem proprietárias das suas terras e terem direito à titulação das terras necessárias à sobrevivência digna. Não há qualquer fundamento jurídico na citada afirmação, apenas valoração subjetiva eivada de preconceitos de cunho racial, que não permitiriam reconhecer a negros e negras a propriedade das terras necessárias à sobrevivência com dignidade. Supostamente, na visão do Ministro Dias Toffoli, negros e negras não merecem acessar "o melhor de dois regimes".
A infeliz afirmação do Ministro Dias Toffoli deve ser interpretada como uma segunda abolição formal e inconclusa da escravidão: negros e negras teriam direito à terra, como no passado tiveram à liberdade, mas apenas a uma pequena porção de terras, como no passado tiveram apenas a liberdade de viver, sem qualquer suporte material por parte do Estado, em uma sociedade que baseia suas relações sociais no racismo, sexismo e na opressão de classe.
Causa ainda perplexidade a afirmação do Ministro Dias Toffoli, contida no texto abaixo transcrito, de que a imposição da tese do "arco temporal" teria o condão de colocar fim aos conflitos agrários entre quilombolas e não quilombolas, a saber:
A meu ver, essa interpretação de “terras ocupadas” em aberto, admitindo inclusive a ampliação das faixas territoriais, de acordo com as necessidades da comunidade, não resolve inúmeras situações conflitivas às quais o comando constitucional buscou pôr fim.
Transposta no tempo, e em seu contexto, a afirmação do Ministro Dias Toffoli se assemelha a aquelas que viram na ação criminosa de Domingos Jorge Velho contra o quilombo dos Palmares a conquista da paz social. A titulação de áreas ínfimas aos quilombolas apenas trará uma suposta paz a quem, hoje e no passado, expropriou as comunidades quilombolas de suas terras tradicionais, mantendo o privilégio de quem agiu, na grande parte das vezes, com violência contra quilombolas. O conceito de ordem pública que sustenta a prisão preventiva de milhares de negros e negras injustamente encarcerados é a mesma que, na visão do Ministro, deve impedir a titulação das terras tradicionais quilombolas. A paz sem voz e sem terra aos quilombolas só interessa a quem vive do privilégio de ser branco e proprietário de terras no país racista com a segunda maior concentração fundiária do mundo.
O golpe final do Ministro Dias Toffoli ao direito quilombola está maquiado de boa intenção, pois afirma que o único caso em que se poderia titular terras que não estariam efetivamente ocupadas por quilombolas em 1988 se daria no caso de "comprovação, por todos os meios de prova juridicamente admitidos, da suspensão ou perda da posse em decorrência de atos ilícitos praticados por terceiros".
O que seria uma exceção benevolente é, na verdade, como foram benevolentes os escravocratas, uma violência dobrada. Não foram raras as vezes que, como ocorrido com quilombolas da comunidade Paiol de Telha, no Paraná[3], quilombola foram violentamente expulsos de suas terras e, quando de tal fato prestaram queixa na polícia, foram presos. Essa situação é, ainda hoje, vivida por quilombolas e por negros e negras não quilombolas, que como o ator negro Diogo Cintra[4], apesar de estarem sendo agredidos e roubados, foram tidos pelo Estado e seus representantes, bem como pelos que assistiam aos atos de violência, como criminosos. Nesse contexto, é praticamente impossível a cada uma das mais de cinco mil comunidades quilombolas brasileiras provar, por todos os meios em direito admitidos, que sofreram violência e expropriação de suas terras.
Por fim, fundamental apontar que o Ministro Das Toffoli não explicita quais seriam as "áreas que estavam ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos, inclusive as efetivamente utilizadas para a garantia de sua reprodução física, social, econômica e cultural, na data da promulgação da Constituição (5 de outubro de 1988)".
Seria possível titular terras utilizadas eventualmente pelas comunidades, como as áreas em disputa, ou as não utilizadas exclusivamente pelas comunidades? A efetiva ocupação a que se refere o Ministro seria derivada do conceito de posse do direito civil, de posse do direito agrário ou do conceito de ocupação tradicional a que alude a Convenção 169 da OIT? As áreas de cultivo, caça, pesca, práticas religiosas e lazer, entre outras, que eram ou ainda são, utilizadas por quilombolas sem que necessariamente terceira pessoa, proprietária da área, tenha conhecimento também poderiam ser tituladas? Como seria possível averiguar, caso a caso, a área que cada uma das mais de cinco mil comunidades quilombolas efetivamente ocupavam em 5 de outubro de 1988?
Todas as questões postas acima levam à conclusão de que a prevalecer os termos do voto do Ministro Dias Toffoli no julgamento da ADI 3239 as comunidades quilombolas terão grandes desafios para superar o racismo e construir possibilidades de vida digna. Mas, como Domingos Jorge Velho não matou Zumbi nem Dandara, mas fez de ambas referências de luta quilombola por justiça, não será a imposição da tese do marco temporal que acabará com a luta quilombola. O tempo passará, quilombolas e o Ministro Dias Toffoli terão lugares distintos na história da luta contra a opressão racista colonial.
[1] Sobre o tema, entre outras obras, ver PRIOSTE, Fernando G. V. ,ARAÚJO, Eduardo Fernandes (orgs):Direito Constitucional Quilombola: Análises sobre a Ação direta de Inconstitucionalidade 3239 e WOLKMER, Antônio Carlos; SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés Direitos; Tarega, Maria C. V. Blanco (orgs)Os direitos Territoriais Quilombolas: Além do marco temporal
[2] Para uma análise mais aprofundada sobre o processo constituinte ver PRIOSTE, Fernando G. V. Terras Fora do Mercado: a Construção Insurgente do Direito Quilombola. Disponível em: http://terradedireitos.org.br/uploads/arquivos/Dissertacao-Mestrado---Fernando-G.-V.-Prioste---Versao-Biblioteca.pdf
[3] Para saber mais sobre a história de expropriação de quilombolas do Paiol de Telha: HARTUNG, Mirian Furtado. O sangue e o espírito dos antepassados: escravidão, herança e expropriação no grupo negro Invernada Paiol de Telha-PR
[4] Sobre a situação vivida por Diogo Cintra ler: https://www.revistaforum.com.br/mariafro/2017/11/16/diogo-cintra-ator-negro-e-mais-uma-vitima-do-racismo-institucional/
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Por Assessoria de comunicação Terra de Direitos
Ações: Quilombolas
Eixos: Terra, território e justiça espacial