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Após luta de mais de uma década, Justiça reconhece usucapião coletiva da comunidade Vila Esperança, no Sabará


Decisão também reconhece a inércia da Companhia de Habitação de Curitiba em garantir o direito à moradia às famílias.

Foto: Arquivo Terra de Direitos

 

Após 12 anos de tramitação de ação judicial, a Justiça reconheceu a usucapião coletiva da Comunidade Vila Esperança, localizada na Cidade Industrial de Curitiba (PR). Em decisão proferida na sexta-feira (18), o juiz Guilherme de Paula Rezende reconheceu que, devido ao decurso de décadas e o caráter da posse, é direito dos moradores ter sua propriedade reconhecida. Também ressaltou o direito a ter garantida a urbanização da área, conforme prevê a Lei da Reurb (Lei 13.465/2017).  

Para os moradores, que lutam há décadas para sair de uma situação de insegurança e obter a regularização fundiária, a decisão é uma vitória muito importante. Ainda que a sentença não ponha fim ao processo, o reconhecimento de seu direito pelo juiz é um grande passo na ação judicial e os traz mais próximos da sonhada regularização de suas casas.

“É uma resposta muito esperada porque estávamos esperando por ela há muito tempo.  Demos entrada em 2008 no pedido de usucapião e estamos em 2020, são 12 anos”, destaca Sebastião Sampaio. Liderança na Vila, Seu Sebastião chegou à comunidade em 1989. Vindo do interior do Paraná, de município rural, em busca de melhora de qualidade de vida, ele se uniu a milhares de famílias e, pela ação coletiva, viu a Vila ser erguida - com asfaltamento, posto de saúde, linhas de ônibus, saneamento público e outros equipamentos essenciais. “Quando cheguei aqui era casinhas de lona, e através do trabalho da gente aqui está tudo sobradinho [alvenaria], com o suor do povo. Tudo o que está em cima desta terra foi pago pela população”, rememora, hoje, aos 74 anos. 

A história de Seu Sebastião foi também a de milhares de outros trabalhadores que, nos anos 70 e 80, vieram para Curitiba em busca de melhores condições de trabalho e de vida, face ao agravamento das condições de vida no meio rural. Contudo, a vida na capital trazia outras dificuldades: os altos valores de aluguel e a falta de políticas públicas para a habitação, que resultaram na ocupação dos vazios urbanos das periferias. A moradia ali, ainda que precária, foi a forma dos trabalhadores conseguirem também acessar os demais direitos, como alimentação, trabalho, saúde e educação. 

Registro do momento de ajuizamento do usucapião coletivo da Vila Esperança. Foto: Arquivo Terra de Direitos

Inércia e desprestígio da política de habitação
A decisão desta sexta-feira se alinha ao entendimento predominante nos tribunais de que é possível a usucapião de imóvel de sociedade de economia mista, como a Curitiba S.A. e a Companhia de Habitação de Curitiba (Cohab). Também foi reconhecida a inércia da Cohab em promover efetivamente a regularização fundiária no caso concreto, o que afasta qualquer alegação de que haveria um serviço público em andamento. A Companhia, proprietária de apenas 5% da área, questionava a pretensão dos moradores. Porém, ficou evidente que, embora se tenha passado mais de 20 anos de sua suposta atuação, nada saiu do papel. 

“O caso mostra uma atuação falha e lenta do Estado: desde a falta de políticas públicas de habitação para recepcionar o grande influxo de moradores pelo êxodo rural nos anos 80 até a atuação da Cohab desde os anos 90, que recebeu valores dos moradores, mas nunca regularizou a área”, afirma Daisy Ribeiro, assessora jurídica da Terra de Direitos. Também a disputa judicial em torno da usucapião, que envolveu atuação contrária da Prefeitura, Cohab e Curitiba S.A., tem se arrastado no tempo

A lentidão do processo trouxe impactos para a vidas das famílias. Seu Sebastião recorda que novas gerações surgiram ao longo da luta pela regularização da área, sem que as famílias tivessem a escritura da área e saíssem de um contexto de insegurança. “Nasceu criança aqui que hoje é pai, nasceu, se criou, casou, teve filhos e nós na luta pra regularizar o terreno”, relata Sebastião. Na semana anterior à decisão de reconhecimento da usucapião coletiva pela justiça, no dia 12 de dezembro, outra liderança da comunidade, o Seu Elio dos Santos, faleceu. Após 30 anos de luta, ele não pôde ver as casas da Comunidade do Sabará regularizadas, como ele tanto reivindicava. (Veja homenagem abaixo).

O caso da Vila Esperança é emblemático para refletirmos sobre baixa importância Curitiba tem dado historicamente ao tema da habitação: orçamento ínfimo, atuação exclusivamente pela Companhia de Habitação, via financiamentos individuais, e sem fazer uso amplo dos instrumentos legais que permitiriam o acesso à moradia adequada às populações mais pobres. “O resultado disso, sobretudo em cenários econômicos difíceis - como o vivido pelos moradores do Sabará à época e também a crise de desemprego atual - é visto na ocorrência de ocupações precárias. É preciso, portanto, de mudanças na atuação do Município, para que a moradia ocupe um lugar central nas políticas públicas. Afinal, moradia é direito”, aponta Daisy. 
 

Veja as propostas da Terra de Direitos e demais integrantes do Mobiliza Curitiba para a pauta.  

O posto de saúde do Sabará foi uma das maiores reivindicações da Vila. Foto: Arquivo Terra de DireitosHistórico da comunidade 
Com mais de 30 anos de história e composta por oito vilas, a região do Sabará foi originalmente ocupada por 190 famílias após remoção forçada na região do Campo Comprido para construção de Terminal de Ônibus, ainda nos anos 80. A área logo cresceu, passando a abrigar os vários trabalhadores vindos do campo que, atraídos pelas promessas de uma vida melhor na cidade face às crescentes dificuldades da vida rural, porém ausentes políticas públicas de habitação na cidade, se viam sem a possibilidade de pagar os crescentes valores de aluguel. Assim, a área do Sabará se consolidou como bairro residencial na década de 90. 

Dadas essas condições particulares de apropriação do espaço em dissonância com a legislação de uso e ocupação do solo, o Sabará foi declarado Setor Especial de Habitação de Interesse Social pela Lei Municipal 9.800/2000, o que permite sua regularização em parâmetros urbanísticos flexíveis, possibilitando a inclusão na cidade formal. A despeito disso, pouco realizou o poder público no sentido de construir uma política efetiva de segurança da posse. Ademais, a Companhia de Habitação de Curitiba (Cohab)/CT – não aceita a utilização de instrumentos jurídicos outros de acesso à terra urbana, além da compra e venda de terrenos, desprezando todo um arcabouço para a regularização fundiária positivado na Lei n. 10.257/2001, o Estatuto da Cidade.

Igualmente, ilicitudes contratuais graves foram averiguadas pelo Ministério Público do Estado nos Termos de Concessão de Uso do Solo realizados pela Cohab com os moradores do Sabará e de outras regiões, como o fato de que a empresa não era proprietária de diversos imóveis que estava “regularizando” nem tinha obtido a aprovação dos loteamentos. Assim, foi ajuizada pelo Ministério Público uma Ação Civil Pública, na qual o Superior Tribunal de Justiça, em 2010, reconheceu a nulidade dos referidos contratos. A despeito do lapso de tempo decorrido, a regularização do Sabará ainda permanece pendente.

A postura omissa do Município fez com a Comunidade tivesse de buscar alternativas para o processo de regularização da área, o que ensejou a atuação do Projeto Direito e Cidadania, da Terra de Direitos, Universidade Federal do Paraná, Universidade Positivo, Ambiens Sociedade Cooperativa e Conselho Regional de Serviço Social do Paraná, dentre outros, para ajuizamento de ações de usucapião coletiva.



Ações: Direito à Cidade
Casos Emblemáticos: Sabará
Eixos: Terra, território e justiça espacial