“Nossos córregos não têm água. Não se vive de barragem, nem comemos eucalipto”, alertam povos tradicionais
Assessoria de comunicação Terra de Direitos
Impactados por empreendimentos e crise climática, comunidades da Serra do Espinhaço (MG) defendem o território como ação de resistência

Povos indígenas, comunidades quilombolas e apanhadoras de flores Sempre-vivas da Serra do Espinhaço (MG) destacam a perda hídrica do Cerrado como um dos maiores impactos da crise climática para a região do Norte e Leste do estado, resultantes direto de ações como o avanço da monocultura, o represamento das águas por hidrelétricas e atividades da mineração.
Ainda que de localidades diferentes desta porção do Cerrado, o lamento sobre a seca de rios, a escassez ou as mudanças no regime das chuvas é algo comum nas rodas de conversa entre povos e comunidades tradicionais.
“O meu território tem cinco córregos que não dá mais água. Vai acabar tudo, porque não se vive de barragem, não comemos capim ou eucalipto e soja transgênica”, relata a Pajé do Povo Tuxá, Alanice Moises. “Meu avô dizia que aqui tinha rios fartos de água. O que a gente tem hoje é falta de água, a gente planta e não consegue colher”, relata a quilombola e presidenta da N’Golo, Edna Guturuba.
Os efeitos da crise hídrica sentidos na prática e alertado há tempos pelos povos e comunidades tradicionais estão também presentes em estudos recentes. Conhecido como berço das águas por dispor de relevo e extensão territorial que favorece o abastecimento de bacias hidrográficas brasileiras – 8 das 12 bacias nascem no Cerrado, as águas no Cerrado têm sofrido mudanças, como a de São Francisco e Tocantins-Araguaia.
Seus rios já transportam um volume de água menor em 27% do que na década de 1970, aponta na análise “Cerrado – O Elo Sagrado das Águas do Brasil”, desenvolvida pela organização de dados, Ambiental Media, e publicado no final de junho.
“Há 20 anos chovia bastante. Eu tenho 40 anos e meu avô dizia: ‘minhas filhas, vai chegar um tempo que vocês não vão ver tantas chuvas igual agora”, relembra a quilombola e apanhadora de Flores Sempre-vivas da Comunidade de Raiz, Eliana Marques Fagundes, sobre mais um alerta dos mais velhos sobre a mudança do clima.
A abundância de água conhecida pelo avô da liderança quilombola tem sido direcionada, principalmente, para a irrigação intensiva do plantio de soja e pastagens. De 1985 e 2022 a área destinada no Cerrado à produção de soja cresceu quase 20 vezes, passando de 620 mil para mais de 12 milhões de hectares (Mapbiomas). Além da irrigação intensiva da monocultura, o desmatamento do bioma para o plantio reduz a capacidade do solo em armazenar água, o que afeta o regime de chuvas também, realimentando o ciclo de escassez hídrica.
Os relatos foram feitos durante a oficina sobre clima e povos e comunidades tradicionais, realizado em Diamantina (MG), nos dias 26 e 27 de agosto. A atividade foi organizada pela Terra de Direitos, com apoio da Comissão em Defesa dos Direitos das Comunidades Extrativistas (Codecex), Federação das Comunidades Quilombolas de Minas Gerais - N’golo e a Articulação Rosalino Gomes de Povos e Comunidades Tradicionais. Em documento as comunidades e povos tradicionais reivindicam a participação direta na construção de soluções para crise do clima.
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Impactos
O sistema tradicional das apanhadoras de flores Sempre-viva foi reconhecido pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), em 2020. O órgão da ONU avaliou que a prática da panha de flores e agricultura sustentável conjuga proteção à biodiversidade, conhecimentos tradicionais, forte herança cultural e a capacidade do ecossistema resistir a mudanças naturais. No entanto, o modo de vida tradicional das comunidades apanhadoras – a 1ª a ser reconhecida com certificação pela FAO - também é afetada pela crise do clima. Isso porque a subida da serra para a panha das flores considera o tempo de chuva e o da seca.
“As estações do ano não vinham no tempo que vinham antes, elas estão mudando e tempos diferentes. É perceptível que as flores vêm menores e não estão vindo em boa quantidade, elas estão ruins”. O relato da jovem Vitória Fernanda, da Comunidade de apanhadoras de São José, em Buenópolis, dá a dimensão dos impactos do clima na vida nas comunidades.
Não apenas os conhecimentos passados de geração a geração sobre a prática da panha levam em conta as mudanças, como a renda – gerada pela venda das flores - também tem sido afetada pela crise climática. “Nós já era para estar preparando para a chuva de flores, da época do cultivo, mas estamos em situação inverno em pleno final de agosto”, diz Rosimeire.
Diante dos impactos, as comunidades ou contam com a sorte e a fé ou adaptam suas práticas e conhecimentos tradicionais aos novos tempos. “Quem plantou mais cedo e seguiu a tradição de São João e São Pedro conseguiu colher algo, mas quem não antecipou o plantio não conseguiu nada”, aponta Eliana.
Um caminho utilizado é adaptar-se ao novo contexto. O jovem apanhador de flores e quilombola da Comunidade de Vargem do Inhaí, Izaias Junior Cruz Alvez, relata que ele e o pai tem plantado em menor quantidade as sementes selecionadas. “A gente tem buscado se adaptar. A gente planta o milho mais resistente ao sol. Muita semente meu pai está perdendo porque a semente não consegue acompanhar o clima, porque a semente estava acostumada a um clima”, aponta.
As comunidades relatam ainda a perda de plantas como a sucupira, a piquezeiro, pacari, unhas dantas e mais plantas medicinais importantes para a dinâmica das comunidades. “Estamos perdendo muito pela mudança do clima”.
“Os impactos da crise climática têm atingido diretamente e de forma desproporcional os povos e comunidades tradicionais, mesmo que seus modos de vida são de baixo impacto e contribuem diretamente para o resfriamento do planeta e conservação da biodiversidade. Para os povos e comunidades que estão no Bioma Cerrado é ainda mais grave, a escassez de normas protetivas e a permissividade das legislações existentes transforma o bioma em uma verdadeira zona de sacrifício”, destaca a assessora jurídica da Terra de Direitos, Marina Antunes. Ela reforça que o Cerrado é o bioma com maior taxa de desmatamento entre 2023 e 2024. Em 2024, foram 652.197 hectares – mais da metade (52,5%) do total desmatado no Brasil no ano passado.
Violados pelo racismo ambiental que faz as comunidades e povos da Serra serem atingidos de modo mais intenso pela crise do clima, com impactos diretos aos seus modos de vida, as lideranças pedem por socorro. “Autoridades máximas, olhem para a Serra, para os mais prejudicados”, reivindica o apanhador der flores Walter Lopes.
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Resistência
Além da seleção de sementes crioulas adaptadas ao clima, a recuperação de nascentes, o reflorestamento e a proteção ambiental são caminhos percorridos pelas comunidades enquanto as medidas de governo não têm sido capazes de mudar o contexto de crise.
Espécies como o ingá contribuem para “preservar a água”, destaca Walter. Isaias destaca que “seguir o costume dos antigos e não roçar a beirada das matas” também tem sido uma via para preservar o leito dos rios. “A gente sabe que a área na beira das nascentes são as melhores pra roça, mas a gente tem o conhecimento tradicional que não pode mexer com a água, porque o clima está difícil com a nascente ali, imagine sem ela”, diz.
Ele comemora o ressurgimento da nascente pelos esforços do pai. “Tinha uma nascente que tinha secado, o gado pisou. O meu pai cercou, e a gente viu ela retornando. Foi uma conquista grande, uma alegria ver a água brotando de novo. Água para nós é maravilhoso”.
Para as comunidades a defesa do território e das práticas tradicionais é caminho também do enfrentamento da crise do clima. “A principal ação contra as mudanças climáticas é a resistência de existir e estar nos territórios, uma vez que a gente resiste e está ali a gente cuida do território, que é parte da gente, a gente se sente pertencente e cuida de forma melhor”, destaca a apanhadora de flores e quilombola da Comunidade de Raiz, Eliad Alves.
Ações: Biodiversidade e Soberania Alimentar
Eixos: Biodiversidade e soberania alimentar
