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Mesmo com dez anos da Lei de Biodiversidade, os conhecimentos de povos tradicionais seguem desprotegidos


Brasil segue expondo intensamente os povos e comunidades tradicionais e seus saberes - Felipe de Souza/Pexels

Por Jaqueline Andrade*

Nesta terça-feira (20) a Lei 13.123, conhecida como Lei da Biodiversidade, completa 10 anos, mas não é possível comemorar. Elaborada para regulamentar artigos da Constituição Federal e da Convenção da Diversidade Biológica (CDB), a lei trata sobre a proteção ao acesso ao conhecimento tradicional, acesso ao patrimônio genético e sobre a repartição de benefícios. Diante do aumento do assédio das empresas aos povos indígenas, quilombolas, povos e comunidades tradicionais e agricultores tradicionais, esses temas adquiriram ainda mais importância na última década. 

A Lei 13.123 trouxe um importante avanço: determinou que empresas, instituições, pesquisadores ou quaisquer outros sujeitos que tenham interesse nestes conhecimentos façam um cadastro no Sistema Nacional de Gestão do Patrimônio Genético e do Conhecimento Tradicional Associado (SisGen), um sistema eletrônico para auxiliar o Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGen) na gestão do patrimônio genético e do conhecimento tradicional associado. Com isso, há a obrigação de que toda pessoa física ou jurídica, nacional ou estrangeira que desenvolva pesquisa ou desenvolvimento tecnológico com conhecimento tradicional associado realize cadastro no sistema antes da finalização da pesquisa ou antes de qualquer requerimento de propriedade intelectual, comercialização ou divulgação dos resultados.  

Esse processo vale, por exemplo, caso uma indústria farmacêutica deseje comercializar uma planta que um povo tradicional estudou e descobriu como benéfica no tratamento de determinada enfermidade. Os registros no Sisgen são analisados pelo Conselho, que avaliam as conformidades dos cadastros e aplicam sanções, em casos de infrações. 

É importante considerar, de partida, a crítica sobre o insuficiente e desproporcional número de assentos destinados para povos e comunidades tradicionais no Conselho Nacional de Gestão do Património Genético, colegiado responsável por decidir sobre o Sisgen (também previsto na Lei da Biodiversidade). Uma grande parte dos assentos são reservados para o governo – 12 assentos titulares apenas para representações ministeriais. Representações da indústria e da agricultura – setores interessados nos conhecimentos tradicionais – também possuem significativo espaço, com assento para a Confederação Nacional da Agricultura (CNA) e Confederação Nacional da Industria (CNI). Já povos tradicionais podem ter representações apenas advindas de uma representação titular do Conselho Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT), uma do Conselho Nacional de Política Indigenista (CNPI) e uma do Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável (Condraf).  

Com a insuficiente destinação no conselho de assentos para representações de povos tradicionais, as decisões do colegiado não são pautadas necessariamente pelo compromisso com proteção da biodiversidade e dos saberes tradicionais.  Compromisso esse que os povos detêm. 

A obrigatoriedade de cadastro é fundamental, mas o problema está na execução. Como o cadastro é autodeclaratório, tem sido baixo o número de registros realizados. Com isso, acontece um efeito cascata de ausência de controle, fiscalização e repartição dos benefícios monetários com os povos tradicionais. E, com poucos recursos técnicos e humanos disponíveis, há uma falta de controle e de rastreabilidade pelo governo federal desses contratos e da atuação de empresas que simplesmente ignoram aquilo que é estabelecido legalmente no Brasil.

Ignorando a determinação legal, muitas empresas realizam contratos bilaterais direto com os povos e comunidades tradicionais para acesso aos seus conhecimentos, sem realizar cadastro no Sisgen. E diante da falta de informação e alta vulnerabilidade que vivenciam, muitas comunidades acabam aceitando esses contratos.

O efeito cascata decorrente da ausência de cadastro no Cgen também impacta a obrigatoriedade das empresas em repassar uma porcentagem do valor obtido com o desenvolvimento de um produto derivado do acesso ao conhecimento tradicional, como repartição de benefícios (monetária e não monetária) ao Fundo Nacional de Repartição de Benefícios (FNRB).

O baixo valor determinado em lei para pagamento pelo mercado ou outro sujeito pelo acesso ao conhecimento tradicional também é um problema. A Lei 13.123/2015 determina que empresas cadastradas no Sisgen repassem o valor de 1% da receita líquida proveniente do acesso ao conhecimento tradicional de origem não identificável, e 0,5% da receita líquida no caso de acesso a conhecimento tradicional de origem identificável.

Os recursos monetários depositados no fundo nacional são destinados exclusivamente a ações, atividades e projetos em benefício dos detentores de conhecimentos tradicionais, que se relacionem com a proteção, promoção do uso e valorização dos conhecimentos tradicionais associados; apoio aos esforços das populações indígenas, das comunidades tradicionais e dos agricultores tradicionais no manejo sustentável e na conservação de patrimônio genético; elaboração e execução dos Planos de Desenvolvimento Sustentável de Populações ou Comunidades Tradicionais, entre outros.

Contudo, os povos e comunidades tradicionais relatam burocracia e complexidade dos procedimentos para acessar os recursos do fundo nacional. A necessidade de elaborar propostas técnicas detalhadas é barreira especialmente para comunidades com pouca infraestrutura. Nesse sentido, há uma carência de ações de capacitação e orientação para que as comunidades compreendam os mecanismos de acesso ao FNRB. Além disso, há falta de transparência na gestão dos recursos do fundo. Apesar do fundo ter sido regulamentado em 2016, sua efetiva operacionalização só ocorreu em 2020 quando o BNDES foi escolhido como gestor financeiro. De lá para cá tiveram poucas iniciativas para descentralização dos recursos, como o Prêmio das Organizações Guardiãs da Sociobiodiversidade e o Enraíza-Bio.

O que a gente tem então é que, com 10 anos da Lei de Biodiversidade, poucas empresas declararam no Sisgen o acesso ao conhecimento tradicional, as empresas pagaram muito pouco pelo acesso aos conhecimentos tradicionais,  há uma baixa arrecadação pelo Fundo Nacional (pouco mais de R$ 7 milhões de reais), e, por consequência, um baixíssimo valor a ser repassado para povos tradicionais como medidas de proteção à biodiversidade.

Ainda que seja reconhecível que o Brasil é um dos países pioneiros na regulamentação da proteção dos conhecimentos tradicionais no mundo, há diversas lacunas que apontam a fragilidade dos objetivos assegurados na Convenção da Diversidade Biológica e no Protocolo de Nagóia, principais tratados internacionais de proteção da biodiversidade e dos saberes tradicionais ratificados pelo Brasil. Mas mais que isso. 

Num momento em que o mercado, cada vez mais, trata os saberes tradicionais e a biodiversidade como mercadorias e buscam o lucro – inclusive com a ameaça de digitalização desses conhecimentos em bancos de informações virtuais geridos por grandes empresas estrangeiras – o Brasil segue expondo intensamente os povos e comunidades tradicionais e seus saberes.  

*Jaqueline Andrade é assessora jurídica da Terra de Direitos e doutoranda na PUC-PR.



Ações: Biodiversidade e Soberania Alimentar
Eixos: Biodiversidade e soberania alimentar