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Carbono à venda no Pará, Direitos em risco: "Mercado do clima” ameaça silenciar comunidades tradicionais


Sem garantir consulta prévia, livre e informada adequada, o mercado de carbono do Pará viola direitos e coloca povos e comunidades tradicionais em risco

Foto: Agência Pará

Selma Corrêa e Alexandre Arapiun

Os mercados de carbono têm sido amplamente promovidos em fóruns internacionais — como a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC), o Protocolo de Quioto e as Conferências das Partes (COP), incluindo a COP29 — como uma das principais estratégias propostas para enfrentar a crise climática global. Em teoria, a lógica é simples e sedutora: quem polui, paga; quem protege, recebe. Na prática, sobretudo na Amazônia, essa fórmula esconde riscos profundos de injustiça, opacidade e violações de direitos, sobretudo de povos e comunidades tradicionais – riscos que o Brasil já começa a experimentar com intensidade. 

Uma Nota Técnica sobre o Direito à Consulta Livre, Prévia, Informada e de Boa-Fé e a atuação do Estado do Pará no Sistema REDD+ Jurisdicional elaborada pela organização Terra de Direitos faz uma análise crítica sobre as potenciais violações de direitos de povos e comunidades tradicionais do estado na implantação do Sistema REDD+ Jurisdicional do Pará, que pretende incluir territórios de  indígenas, quilombolas, extrativistas, ribeirinhos, pescadores artesanais e demais comunidades como áreas de execução do projeto.  

No evento de lançamento, realizado na sede do Ministério Público Federal (MPF) em Belém (PA) no dia 17, foram debatidas questões fundamentais sobre o projeto de mercado de carbono encabeçado pelo Governo do Pará. O que se observou nas falas de lideranças, especialmente quilombolas, e de representantes dos Ministério Público Federal e Estadual foram as ausências de informações sobre o projeto e inconsistências do processo de construção e consulta prévia, livre e informada, que é direito dos povos e comunidades que terão seus territórios afetados pelo Sistema Jurisdicional de REDD+.  

A recente construção do Sistema Jurisdicional de REDD+ (SJREDD+) pelo Estado do Pará, com a previsão de realizar 47 Consultas Livres, Prévias e Informadas (CLPIs) em territórios de povos e comunidades tradicionais representam, em tese, um marco relevante no reconhecimento deste direito pelo Estado e do papel desses povos na construção de uma política climática estadual.  

Contudo, uma análise crítica dos documentos e comunicados oficiais revela que o processo anunciado pelo governo paraense, apesar do uso da linguagem correta e da aparente disposição em dialogar, o modelo apresentado incorre em vícios estruturais que violam frontalmente o direito à consulta livre, prévia e informada, garantido pela Constituição Federal, pela Convenção nº 169 da OIT e por diversos tratados internacionais de direitos humanos. 

O primeiro e mais evidente problema é a tentativa de justificar a forma e o alcance territorial da consulta por meio do chamado “princípio da reserva do possível”, uma construção jurídica de origem alemã. Segundo a justificativa do Estado, a organização das 47 consultas — distribuídas entre apenas três segmentos (indígenas, quilombolas e extrativistas) — foi planejada de modo a compatibilizar os limites orçamentários com a necessidade de abrangência geográfica. 

No entanto, essa justificativa é inaceitável sob a ótica dos direitos humanos. O direito à consulta não é um serviço público sujeito à conveniência administrativa ou financeira; trata-se de um dever do Estado e de um direito subjetivo dos povos. 

No direito brasileiro, o princípio da reserva do possível — também conhecido como princípio da reserva de consistência — não pode ser invocado como obstáculo ao reconhecimento e à efetivação de direitos sociais. Pelo contrário, seu uso como limitador representa uma restrição indevida à efetividade dos direitos fundamentais. 

Fica evidente que uma política pública que envolve a financeirização da natureza e pretende ser implementada em todo o estado do Pará, como é o caso do Sistema REDD+ Jurisdicional precisa de um debate mais amplo e acessível para que as comunidades possam decidir. A consulta livre, prévia e informada precisa ser realizada de forma adequada.  

Em segundo lugar, chama atenção a estratégia de uniformização territorial das consultas. Na prática, essa abordagem funciona como uma forma de regionalização administrativa que pode desconsiderar as formas próprias de organização, decisão e territorialidade de cada povo e comunidade.  

A construção de uma relação justa, respeitosa e plural com os povos tradicionais passa, necessariamente, pelo reconhecimento de seus direitos coletivos e pela efetiva implementação do direito à consulta prévia, livre e informada. 

A consulta é um processo intrinsecamente cultural e ligado ao território, que não pode ser tratado apenas como uma sequência de audiências públicas com um número de participantes. Ao reunir diferentes povos em eventos conjuntos, o Estado acaba por diluir suas identidades, marginalizar suas lideranças tradicionais e enfraquecer a força vinculante do processo. 

Por exemplo, o Plano de Consulta divulgado pelo Governo em maio prevê a realização de apenas 47 consultas presenciais, distribuídas entre os segmentos indígenas, quilombolas e extrativistas, com cerca de 150 participantes por encontro. De acordo com o documento, essa configuração garantiria uma participação ampla. 

Entretanto, no caso das comunidades quilombolas, além do número reduzido de consultas — que totalizam apenas 17 encontros —, a quantidade de participantes em cada evento é bastante restrita. Caso essa proposta seja mantida, estima-se que apenas 1,8% dos quilombolas do estado estarão envolvidos no processo, conforme dados da Terra de Direitos. 

O Plano de Consulta do Estado do Pará, embora revestido de linguagem participativa, revela uma abordagem tecnocrática, centralizada e já bastante encaminhada. Ele compromete a legalidade do Sistema REDD+ estadual, gera insegurança jurídica para os contratos derivados. Se o Estado do Pará pretende liderar a transição ecológica com justiça social, precisa abandonar a lógica da conveniência e adotar, de fato, o caminho de proteção dos povos e comunidades tradicionais e isso parte de garantir a autonomia de seus territórios e direitos fundamentais.  

O que está sendo vendido e a quem interessa? 

A ideia de comercializar créditos de carbono surgiu nos anos 1990, impulsionada por acordos como a Convenção do Clima da ONU e o Protocolo de Quioto. Estabeleceu-se então um sistema em que quem reduz suas emissões pode vender esse “excedente” a quem ultrapassou seus limites. Em essência, trata-se de comprar o direito de poluir, com a promessa de que, em algum lugar do planeta, uma área de floresta está sendo preservada para compensar o dano. No entanto, a velocidade com que grandes indústrias poluem e de absorção da floresta não são iguais.  

No Brasil, o marco legal mais recente sobre o tema é a Lei nº 15.042, sancionada em dezembro de 2024, que criou o Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões (SBCE). Entre suas disposições, a norma reconhece os programas jurisdicionais REDD+ com abordagem de mercado – iniciativas conduzidas por governos estaduais ou federais para reduzir o desmatamento e recuperar florestas, com pagamentos por resultados. A lei determina que os ganhos sejam repartidos entre União e estados, e proíbe a venda antecipada de créditos ainda não verificados, além de exigir transparência total nos processos. 

No papel, tudo parece estar no rumo certo. Mas a realidade observada no estado do Pará mostra que a prática pode se desviar gravemente dos princípios anunciados, representando sérios riscos a povos e comunidades tradicionais. 

Em 24 de setembro de 2024, durante a Semana do Clima de Nova York, o governo paraense anunciou com entusiasmo a assinatura de um contrato internacional no valor de quase R$ 1 bilhão com a Emergent Forest Finance Accelerator Inc., coordenadora da Coalizão LEAF – aliança formada por países ricos (como Estados Unidos, Reino Unido e Noruega) e megacorporações como a Amazon, a Bayer e o Walmart. O evento ocorreu na Casa Amazônia, vitrine montada para atrair investidores estrangeiros. 

O contrato, um Emission Reduction Purchase Agreement (ERPA), previa a comercialização de créditos oriundos do REDD+ Jurisdicional do Pará, mesmo sem a regulamentação definitiva do sistema e sem a adequada consulta aos povos e comunidades tradicionais cujos territórios seriam diretamente impactados pelo projeto. Portanto, esse contrato padece de um vício fundamental: a ausência da Consulta e Consentimento Livre, Prévio e Informado (CLPI) dos povos e comunidades tradicionais que vivem nos territórios onde os créditos são gerados. A própria Lei nº 15.042/2024 reconhece que os créditos de carbono em programas jurisdicionais pertencem ao ente público, mas prevê mecanismos que resguardam os direitos de terceiros — como o de excluir suas áreas —, o que implica a necessidade de regulamentação específica para garantir a repartição justa de benefícios, especialmente em territórios ocupados por povos e comunidades tradicionais. 

E como garantir essa repartição justa sem diálogo? A CLPI não é uma mera formalidade. Ela é um direito constitucional, respaldado pela Convenção nº 169 da OIT, pela Declaração da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas, e, como mostrado na Nota Técnica, por reiteradas decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos. O Brasil tem o dever de garantir que qualquer iniciativa que afete povos tradicionais — especialmente aquelas com implicações econômicas, ambientais e territoriais — seja construída com participação real e consentimento prévio. 

Contratos como o ERPA, assinados sem esse processo adequado a ser realizado de acordo com os princípios da Convenção 169, equivalem juridicamente a vender algo que não pertence ao Estado. São os povos tradicionais que, historicamente, protegem os biomas brasileiros e garantem os chamados “serviços ecossistêmicos”. Negociar créditos de carbono sem escutá-los é não só ilegal — é moralmente insustentável. 

Diante das inconsistências, o Ministério Público Federal (MPF) e o Ministério Público do Estado do Pará (MPPA) expediram recomendações exigindo correções. Entre os pontos apontados, estavam a necessidade de garantir transparência, respeitar os protocolos comunitários, realizar audiências públicas e rever cláusulas que permitiriam, por exemplo, repasse de benefícios a grandes proprietários rurais, em detrimento das comunidades locais. 

Em abril de 2025, o MPF recomendou formalmente a anulação do contrato, com base na vedação legal à venda antecipada de créditos. O governo estadual, no entanto, respondeu que o contrato seria apenas uma promessa condicional, vinculada à comprovação futura dos resultados ambientais – argumento que, embora juridicamente sofisticado, não convence do ponto de vista ético, político e nem jurídico. 

Afinal, como justificar a celebração de um contrato bilionário com agentes internacionais sem sequer escutar as comunidades que vivem nas áreas florestais? Como garantir repartição justa de benefícios sem critérios claros do que está sendo vendido, e nem mecanismos de governança participativos? O MPF então ajuizou ação na Justiça Federal pedindo a suspensão e anulação do contrato.  

Vender a natureza não é justiça climática 

O caso do Pará é emblemático. Lança luz sobre uma tendência preocupante: a transformação da política climática em um novo terreno de negócios bilionários, muitas vezes à custa da democracia, da soberania dos territórios e da dignidade dos povos indígenas e tradicionais, uma verdadeira financeirização da natureza.  

O Sistema Jurisdicional REDD+, da forma como está desenhado, não condiz com a realidade dos territórios. Muito ainda precisa ser feito para que se garanta a participação de povos e comunidades tradicionais que serão impactados por esse mecanismo financeiro que avança a sobre os territórios tradicionais. 

Os povos tradicionais devem ser consultados desde as etapas iniciais de qualquer projeto de desenvolvimento ou investimento que possa impactá-los. A transformação dos recursos naturais em ativos financeiros reflete uma visão oposta à relação que esses povos estabelecem com os ecossistemas, pois prioriza a exploração e a apropriação dos recursos naturais em detrimento das práticas tradicionais de cuidado e respeito pela terra. “Financeirizar” a natureza é a forma que o capitalismo encontrou para continuar se apropriando dos bens naturais. Isso coloca em risco a governança dos territórios e não é, nem de longe, a garantia de justiça climática. 

Selma Corrêa é advogada popular da Terra de Direitos. 

Alexandre Arapiun é discente do curso de direito da Universidade Federal do Oeste do Pará e integra a equipe de assessoria jurídica da Terra de Direitos



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Ações: Quilombolas,Conflitos Fundiários
Eixos: Terra, território e justiça espacial,Biodiversidade e soberania alimentar
Tags: mercado de carbono,pará,consulta prévia