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Por que é constitucional que leis estaduais suspendam despejos na pandemia?

29/04/2021 Júlia Ávila Franzoni, Daisy Ribeiro e Raquel Pires

Criada por movimentos e organizações rurais e urbanas, a Campanha Despejo Zero tenta impedir a remoção de famílias no contexto da pandemia. Foto: Reprodução Facebook

Julia Ávila Franzoni[1]

Daisy Ribeiro[2]

Raquel Pires[3]

No dia 28 de setembro de 2020, foi aprovada a Lei Estadual nº 9.020/20, do Rio de Janeiro, determinando a suspensão do cumprimento de mandados de reintegração de posse, despejos e remoções judiciais, assim como a suspensão da aplicação de juros de mora e multas contratuais em caso de não pagamento de aluguéis ou prestações de quitação de imóveis. A lei tem por objetivo consolidar medida temporária de prevenção do contágio e propagação da COVID-19, vigorando enquanto durar a situação de calamidade pública decorrente da emergência do novo coronavírus.  Em correspondência às determinações internacionais dos Órgãos de Proteção dos Direitos Humanos, esse ato normativo compreende a moradia como direito da linha de frente da defesa contra a pandemia[4], orientado à maximização da proteção da vida e da saúde.

Criminalização da pobreza e violação de direitos pelo Poder Judiciário

Passados 2 meses de vigência da Lei 9.020, a Associação de Magistrados do Estado do Rio de Janeiro (AMERJ) interpôs Representação de Inconstitucionalidade perante o Tribunal de Justiça (TJRJ), questionando o referido ato normativo. A apresentação dessa medida ocorreu dias depois de ações de incidência da Campanha Despejo Zero do Rio de Janeiro: a) realização de audiência pública com a Procuradoria Regional de Defesa do Cidadão e b) reunião e oficiamento da Presidência do TJ, requerendo o cumprimento da legislação estadual e das demais normativas e recomendações aplicadas aos casos de ameaças de remoção.

O Desembargador relator do caso concedeu medida liminar nos termos do pedido da AMERJ, argumentando que a lei estadual representava uma verdadeira ofensa ao princípio da separação de poderes e à inafastabilidade da jurisdição. O TJRJ entendeu que o estado não possuía competência legislativa para tratar de temas de direito civil e processual, tampouco para limitar a atividade jurisdicional, uma vez que a pandemia não poderia ser pretexto para interpretações que colocassem em risco a repartição de competências constitucionais. De acordo com a decisão, o Poder Público deveria adotar medidas que garantam o direito à moradia e à saúde dos ocupantes a serem desalijados, e não manter os ‘esbulhadores’ no imóvel, já que tal feito representaria “clara transferência desse encargo ao proprietário autor, que já́ vem sendo onerado pela ilícita ocupação de seu bem”.

Vinculação entre moradia e saúde nos precedentes do STF

Ao tomar conhecimento da decisão que declarou a inconstitucionalidade da Lei 9.020, a Defensoria Pública estadual interpôs Reclamação Constitucional ao Supremo Tribunal Federal (STF), alegando que a decisão do TJ-RJ ofendia diversos precedentes do plenário daquela Corte. A DPRJ defendeu a plena constitucionalidade da lei, argumentando que, embora disponha sobre o sobrestamento de mandados de reintegração de posse, despejos, e outros, a normativa tem por objetivo central impedir que centenas de pessoas sejam desalojadas de suas residências, em plena pandemia, e se tornem incapazes de cumprir as medidas para evitar contaminações e a propagação do vírus. Ademais, destacou que a lei trata sobre procedimento e não sobre processo civil: a norma suspende o cumprimento, no plano dos fatos, de ordens de reintegração de posse e despejo, sendo um ato exterior ao processo, não havendo qualquer violação à competência privativa da União para legislar sobre direito processual.

Acolhendo os principais argumentos da DPRJ, o Ministro Ricardo Lewandowski, em julgamento monocrático datado de 23/12/2020, deferiu o pedido de liminar para suspender os efeitos da decisão do TJRJ, restabelecendo a constitucionalidade da lei estadual. Na oportunidade, fez referência às decisões proferidas pelo plenário do STF na ADI 6.341 e na ADPF 672, entendendo que o estado do Rio de Janeiro tem autonomia para adotar medidas de contenção da propagação do novo coronavírus, de modo que a ALERJ atuou no exercício da competência concorrente para legislar sobre saúde pública.

a) o argumento da competência concorrente em matéria de saúde pública

Em sede da ADI 6.341, o STF decidiu que os entes federativos possuem competência concorrente para adotar as providências normativas e administrativas necessárias ao combate da pandemia. Embora o Presidente da República possa dispor, mediante decreto, sobre os serviços públicos e atividades essenciais, fica preservada a atribuição de cada esfera de governo em matéria de saúde pública. Ademais, o entendimento consolidado na ADPF 672 reconhece e assegura o exercício da competência concorrente dos governos estaduais e distrital e suplementar dos governos municipais. Na aplicação  da Lei Federal 13.979/2020 – que dispõe sobre medidas de enfrentamento à atual emergência de saúde pública e elenca o distanciamento social como uma das principais –, devem ser observados os artigos 23, II e IX; 24, XII; 30, II e 198 da Constituição Federal, entendendo a Corte que a gravidade da emergência exige das autoridades brasileiras, em todos os níveis de governo, a efetivação concreta da proteção à saúde pública, com a adoção de todas as medidas possíveis e tecnicamente sustentáveis para o apoio e manutenção das atividades do Sistema Único de Saúde (SUS).

b) o argumento da não intromissão em matéria de direito civil e processual

Conteúdo importante da decisão do Ministro Lewandowski é a compreensão de que a lei estadual do Rio, mesmo abordando mandados de reintegração de posse, imissão na posse, despejos e remoções, não está legislando sobre matéria de direito civil e processual: o conteúdo do ato normativo se limita a promover o sobrestamento temporário da execução de tais medidas, levando-se em conta a complexidade ora enfrentada em razão da pandemia.  A lei em discussão promove alterações nos procedimentos judiciais referentes às remoções forçadas como parte da agenda de combate à disseminação da COVID-19, buscando adequar essas medidas com as regras de distanciamento e o contexto da pandemia. A decisão do TJRJ, portanto, afronta o entendimento prevalecente no STF, no sentido de que medidas legislativas de suspensão dos despejos tratam de temática atinente à saúde pública, matéria de competência concorrente entre os entes federados. A Segunda Turma do STF, por unanimidade, negou provimento ao agravo regimental da AMERJ, nos termos do voto do ministro Ricardo Lewandowski, em 15/03/2021.

O que podemos aprender com o entendimento do STF e com a Campanha Despejo Zero?

1) A dimensão coletiva de realização dos direitos e a imbricação entre moradia e saúde: nos termos do que vem defendendo a Campanha Despejo Zero, o direito à moradia deve ser compreendido de maneira atrelada ao direito à saúde (pública e individual), evidenciando a dimensão coletiva de realização dos direitos sociais. Enquanto vigorar a situação da pandemia e o Plano Nacional de Imunização, a interrupção dos fluxos de contágio e a garantia do direito à moradia são fundamentais para enfrentamento do vírus. Note-se que o centro de gravidade da decisão do STF não é o direito civil e processual, tampouco a discussão sobre posse e propriedade privada, mas sim, o fato de que a suspensão dos mandados que implicam remoção de pessoas se insere em um contexto mais amplo de preservação da saúde pública e individual, considerando que essas ordens terão impactos graves e indesejados sobre a manutenção das condições sociais e sanitárias necessárias à contenção da Covid-19[5].

2) As ocupações de moradia e a segurança da posse são matéria de direitos humanos e não caso de polícia: as ordens de despejo são potencialmente violadoras de direitos e, portanto, as decisões jurisdicionais devem determinar o compromisso dos agentes envolvidos como os seus prováveis impactos. Dessa forma, antes do cumprimento de medidas que podem implicar uso de violência e ameaça de direitos, deve-se salvaguardar as garantias prévias às famílias envolvidas e o atendimento de medidas de mediação de conflito[6].

Recente marco normativo direcionado ao Poder Judiciário versa, fundamentalmente, sobre esses dois elementos. Trata-se da Recomendação nº 90 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), aprovada na sessão de 23 de fevereiro de 2021. Neste dispositivo, recomenda-se aos órgãos do Poder Judiciário que, enquanto perdurar a situação da pandemia de Covid-19, sejam especialmente cautelosos no deferimento de tutela de urgência que tenha por objeto desocupação coletiva de imóveis urbanos e rurais, sobretudo nas hipóteses que envolverem pessoas em estado de vulnerabilidade social e econômica. Nessa mesma Resolução, é recomendado que se observe a Resolução nº 10, de 17 de outubro de 2018, do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), que dispõe sobre soluções garantidoras de direitos humanos e medidas preventivas em situações de conflitos, considerando os despejos como a última ratio dentro desse processo.

Outros estados também têm agido para regulamentar medidas de enfrentamento à pandemia, resguardando o direito à moradia da população vulnerável. Alguns exemplos emblemáticos são: a) a Lei 6.657 do Distrito Federal, que, ao propor um Plano Emergencial de enfrentamento à COVID-19 estabelece, entre outros, a proibição de remoções ou desocupações; b) a Lei nº 5.4292, do Amazonas, que suspende mandados de reintegração de posse em todo o estado enquanto vigorar o estado de calamidade pública em razão da covid-19; c) a Lei nº 9.212, do Pará, que busca garantir o direito do ocupante à moradia em todas as situações – rural, urbano, pública ou privada –  garantindo que não haverá́ despejos ou remoções forcadas nesse período e d) a Lei nº 11.676, da Paraíba, que proíbe despejo por falta de pagamento.

Como tem reiterado a Campanha Despejo Zero, a gramática de direitos deve estar à serviço da vida e da saúde, e não dos negócios privados e da propriedade.

 


[1] Advogada Popular associada da Terra de Direitos, Professora da FND-UFRJ e coordenadora do Labá – Direito, Espaço & Política

[2] Advogada da Terra de Direitos

[3] Pesquisadora do Labá – Direito, Espaço & Política

[4] Vide Nota de Orientação à Covid-19, Relatoria da ONU para Moradia Adequada.

[5] No tocante aos marcos normativos internacionais, veja-se: a) a Resolução 01/2020 da CIDH, b) o Comentário do Comitê DESC sobre a pandemia de Covid-19 da ONU, c) as Diretrizes essenciais para incorporar a perspectiva de direitos humanos em atenção à pandemia por Covid-19 da ONU, d) a “Declaração de política do ONU-Habitat sobre a prevenção de despejos e remoções durante a Covid-19” e e) “Mensagens-chave da ONU-Habitat: Moradia e Covid-19”. No cenário nacional, importante frisar que o STF determinou, em duas ocasiões, a suspensão nacional de processos judiciais (ações possessórias e anulatórias de processos de demarcação), até o término da pandemia, no tocante aos a) povos indígenas (RE 1017365) e b) quilombolas (ADPF 742).

[6] Nesse sentido, para além dos Comentários 4 e 7 do PIDESC relativos ao direito à moradia e segurança da posse, importante associar o precedente estabelecido na ADPF 635, suspendendo operações policiais em favelas, com a especial cautela para expedição de ordens de remoção no contexto da pandemia.

 

 

 

 

 



Ações: Direito à Cidade
Eixos: Política e cultura dos direitos humanos
Tags: despejos,leis estaduais,covid