Tribunal internacional condena despejos de comunidades brasileiras
Franciele Petry Schramm
Realizado no Fórum Social Mundial, Tribunal reuniu cinco casos emblemáticos de diferentes regiões do país.
De diferentes países, os jurados que integraram o júri da sétima edição do Tribunal Internacional dos Despejos condenaram, nesta quarta-feira (14), os despejos de comunidades brasileiras apresentados no dia anterior. Para solucionar e reparar esses conflitos, os jurados também fizeram uma série de recomendações provisórias que devem ser reformuladas para serem entregues à representantes do poder público e da comunidade internacional em até 30 dias.
Nesta sétima edição, que é realizada durante o Fórum Social Mundial, cinco casos emblemáticos de quatro regiões do país foram apresentados. A diversidade das experiências e dos sujeitos e sujeitas envolvidos foi um dos aspectos considerado para a seleção dos casos
Violações de direitos semelhantes podem ser encontradas em realidades diferentes: pessoas em situação de rua, quilombolas, pescadores, integrantes de ocupações urbanas tiveram desrespeitado seu direito à moradia. Os agentes violadores, em muitos desses – e em outros casos também se repetem. Empresas, proprietários de imóveis irregulares, ou até mesmo agentes públicos, com apoio do Poder Judiciário, são responsáveis pelo despejo de centenas – ou até milhares – de famílias.
Com lágrimas nos olhos, vítimas dessa situação relataram seus casos. Um dos relatos que emocionou os presentes no evento foi o da ocupação Cidade das Luzes, em Manaus (AM). Os moradores foram tirados à força de suas casas em 10 de dezembro de 2016, data que é celebrada como Dia Internacional dos Direitos Humanos. Três pessoas morreram durante a operação. “Foi uma situação muito difícil, de violação de tudo. Isso para beneficiar um proprietário de terra que tinha dívidas com a prefeitura”, fala uma das moradoras do local.
Outro caso apresentado não tem lugar definido – ele se repete em todo o Brasil, principalmente nos grandes centros urbanos. Maria Lucia Pereira, coordenadora do Movimento Nacional da População em Situação de Rua, representou as pessoas que são despejadas cotidianamente das ruas das cidades, onde permanecem pela dificuldade de acessar moradia popular. “É o despejo dos despejados”, fala. “A gente não sabe mais para quem pedir ajuda. Esperamos que a população em situação de rua possa ser respeitada como ser humano, como cidadão e cidadã, e que quando seja retirada de um espaço não seja para jogar de um lugar para outro, mas que tenha acesso prioritário e imediato à habitação”.
Representantes da comunidade pesqueira Canabrava e das comunidades Povo Sem Medo do quilombo Ilha dos Mercês também narraram suas experiências. Os episódios de violência são comuns em todas elas. Para quem foi obrigado a sair de sua casa, a necessidade de voltar é urgente. Ao serem despejados, em julho de 2017, os moradores de Canabrava não perderam apenas a moradia, mas também o trabalho – a pesca. “Se a gente pudesse voltar ontem era melhor, porque hoje já é tarde”, conta uma das lideranças comunitárias do local. Pela intensa criminalização das pessoas da ocupação, o nome da liderança não será divulgado.
A realidade de ocupações de Salvador também pode ser conhecida pelos jurados e integrantes da organização do Tribunal. Na segunda-feira (12), o coletivo visitou ocupações do Centro Histórico da cidade, e continuou a reflexão da situação das comunidades durante debate realizado na tarde desta quarta.
Recomendações
Após o relato dos casos, os jurados emitiram uma série de recomendações para reparação da situação. A jurada Charlene Egídio destacou que a composição variada do júri – com pessoas que, como ela, passaram por experiências semelhantes – traz outro olhar sobre a questão. “Se todo o Judiciário tivesse essa observância, não teríamos tantas injustiças no Brasil”, aponta. Charlene é moradora da Ocupação Rosa Leão, em Minas Gerais, emblemática por ter tido a reintegração de posse suspensa por decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ). O caso da Izidora foi apresentado na sessão do Tribunal Internacional dos Despejos em Quito, Equador, em 2016.
Outro jurado veio dos Estados Unidos. Robert Robison, esteve em situação de rua em seu país. Hoje, atua pela Aliança Canadá-Estados Unidos de Habitantes. “É difícil ser técnico em algo que me emocionou tanto”, desabafou o jurado Rob Robinson, dos Estados Unidos. E avalia: “O primeiro crime é despejar famílias para manter um prédio abandonado”.
Na segunda-feira (12), jurados e integrantes da organização do Tribunal também visitaram diferentes ocupações do Centro Histórico de Salvador, para entender melhor a realidade dos moradores locais.
Entre as recomendações apresentadas pelo júri, está o retorno imediato das famílias despejadas para as comunidades, o fim da perseguição contra as lideranças comunitárias, investigação dos abusos policiais, garantia de infraestrutura adequada, e reparação pelos danos materiais, emocionais e sociais das famílias despejadas.
Foram jurados a Promotora de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais Nívea Sila; Ângela Gordilho, docente da Pós-graduação em Arquitetura da UFBA; Cesare Ottolini, ativista italiano pelo direito à moradia e coordenador mundial da Aliança Internacional de Habitantes e co-fundador do Tribunal Internacional de Despejos; Charlene Egídio, coordenadora e moradora da ocupação Rosa Leão, de Minas Gerais; Lúcia Moraes, professora de Arquitetura da PUC-Goiás e ex-Relatora do Direito Humano à Moradia da Plataforma Dhesca; Luiza Veloso, defensora pública do Estado de São Paulo onde coordena o Núcleo de Habitação e Urbanismo; e Rob Robinson, coordenador da Aliança Canadá-Estados Unidos de Habitantes.
O júri também contou com a participação de quatro jurados populares: Benedito Barbosa, coordenador da União Nacional por Moradia Popular; Thales Augusto, das Brigadas Populares; Pergentina Vilarim, do Fórum Estadual de Reforma Urbana de Pernambuco, e Eduardo Cardoso, do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto.
Sobre o Fórum Social Mundial
Realizada em Salvador-BA entre os dias 13 e 17 de março, a 13ª edição do Fórum Social Mundial deve reunir cerca de 60 mil pessoas de diferentes países. Cerca de 1.300 atividades estão programadas para esse período. Diante do conjunto de retrocessos resultados de medidas autoritárias do Governo brasileiro e de outros países, a edição deste ano adota como lema o enunciado “Resistir é criar. Resistir é transformar!”.
Conheça os detalhes de cada caso:
Quilombo Ilha dos Mercês
Quando o Estado viola direitos: ameaças de despejo da comunidade quilombola de Ilha de Mercês por parte da empresa pública CIP-Suape - Pernambuco – Brasil
No litoral sul do estado de Pernambuco (região nordeste do Brasil), a comunidade quilombola da Ilha de Mercês vem sofrendo sistemáticas investidas contra seu território por parte do Complexo Industrial Portuário – SUAPE, empresa pública do estado de Pernambuco. Com o despejo em massa intensificado a partir de 2010, restam 213 das 800 famílias.
Localização (cidade, região, Brasil): Ipojuca, Pernambuco, Brasil
Tipo de despejos: Despejo em território quilombola, onde a comunidade desenvolve também a agricultura familiar e a pesca artesanal
Número de despejados: 2254
Agente violador: Complexo Industrial Portuário – SUAPE, empresa pública administrada pelo governo do estado de Pernambuco
Recomendações do Júri: reparação das famílias atingidas por meio de indenização pelos danos patrimoniais e morais reassentamento das famílias no local; investigação dos casos noticiados para punir os responsáveis; garantia da integridade física da comunidade.
População em Situação de Rua
Despejar os despejados: reordenamento urbano e higienismo social contra pessoas em situação de rua
Mais de 100 mil pessoas estão em situação de rua no Brasil, pelas mais diversas razões, e integram um grupo que tem crescido cada vez mais. As pessoas em situação de rua perderam todas as condições de realizarem a manutenção de suas vidas em uma moradia. As pessoas já despejadas, passam a ser cotidianamente ameaçadas, intimidadas e por fim despejadas do espaço público quando este é o último lugar que lhes restou.
Enquanto local de moradia, o espaço público é um espaço de grande vulnerabilidade: de preconceito, violência, e intempéries climáticas. O resultado deste processo é que pessoas já despejadas, sem acesso a uma unidade habitacional, passam a ser cotidianamente ameaçadas, intimidadas e por fim despejadas do espaço público quando este é o último lugar que lhes restou. Nesta configuração, de um pouco de vista lógico, a vida dessas pessoas “sem-lugar” se torna absolutamente impossível. O despejo é algo inerente à situação de vida nas ruas.
Localização (cidade, região, Brasil): Principalmente Capitais, Brasil
Tipo de despejos: Área Pública, prédios abandonados, marquises, viadutos, etc.
Número de despejados: 100.000
Agente violador: Em geral as prefeituras municipais
Recomendações provisórias do Júri: elaboração de políticas públicas de moradia para famílias em situação de rua, em especial em imóveis ociosos e sem função social, preferencialmente em regiões centrais; desempenho ativo do Ministério Público e Defensoria Pública na fiscalização de contratação de instituições religiosas que executam serviços para população em situação de rua; impedimento da retirada de pertences das famílias em situação de rua e responsabilidade civil e penal das autoridades públicas envolvidas; mediação de remoções feita pelo movimento social; reconhecimento do direito ao descanso; contato com organismos internacionais para visita ao Brasil.
Canabrava-Buritizeiro
Despejos forçados realizados na Comunidade Pesqueira e Vazanteira de Canabrava em Buritizeiro – Minas Gerais
Ao longo de 2017, a Comunidade Tradicional pesqueira e vazanteira de Canabrava, em Buritizeiro-MG, foi vítima de diversas ações de despejo e remoções forçadas. Apesar de estar localizada em área da União, com pedido de Termo de Autorização de Uso Sustentável (TAUS), as mais de 300 pessoas foram forçadas a deixar sua comunidade, em decisão que beneficiou latifundiários interessados na especulação fundiária.
Localização (cidade, região, Brasil): Buritizeiro, Minas Gerais, Brasil
Tipo de despejos: despejo de habitação, em razão de Especulação praticada por latifundiários
Número de despejados: 300
Agentes violadores: Fazendeiros, Poder Judiciário, Governo Federal, Governo do Estado, Polícia Militar do Estado de Minas Gerais
Recomendações provisórias do júri: retorno imediato das famílias para o local; termo de uso sustentável indeterminado; garantia do direito ao trabalho e ir e vir na comunidade; denúncia da violação da convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho; arquivamento dos inquéritos de criminalização dos moradores.
Cidade das Luzes
Cidade das Luzes: despejo violento em Manaus/AM
Mais de três mil famílias, cerca de 12 mil pessoas no total, ocuparam em 2014 um terreno abandonado, de propriedade privada, no Bairro do Tarumã, em Manaus. Após mais de 2 anos vivendo no local, as famílias foram despejadas em uma ação de extrema violência, e sem que o poder público oferecesse qualquer alternativa habitacional ou indenização. Durante a reintegração, houve três óbitos.
Localização (cidade, região, Brasil): Manaus, Região Norte, Brasil
Tipo de despejos: Reintegração de posse de terreno de propriedade privada, que não cumpria sua função social
Número de despejados: 12 mil
Agentes violadores: Governo do Estado do Amazonas, Secretaria de Segurança Pública do Estado do Amazonas, Procuradoria Geral da Prefeitura de Manaus, Poder Judiciário.
Recomendações provisórias do júri: suspensão de um novo despejo; abertura de processo de diálogo e mediação entre poder público e moradores do local; garantia de habitação e de serviços essenciais; detenção de pessoas envolvidas no despejo e mortes ocorridas em 2016; investigação da validade dos títulos do imóvel ocupado; reparação de bens materiais e dos impactos psicológicos e sociais das famílias despejadas; libertação de lideranças criminalizadas; denúncia em âmbito internacional.
Povo Sem Medo
Ocupação Povo Sem Medo: resistência e luta em São Bernardo do Campo
A Ocupação Povo Sem Medo, em São Bernardo do Campo, SP, é a maior da América Latina, com 8 mil famílias. Teve início em 1/7/17, organizada pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Teto. O terreno encontrava-se desocupado há pelo menos 40 anos, não cumprindo sua função social. No dia seguinte à ocupação, o proprietário obteve liminar judicial para reintegração de posse, prevista para abril de 2018.
Localização (cidade, região, Brasil): São Bernardo do Campo, São Paulo, Brasil
Tipo de despejos: despejo de habitação, em razão de especulação imobiliária
Número de despejados: 33.883
Agente violador: Proprietário privado
Recomendações provisórias do júri: estabelecimento de mesa de diálogo entre poder público e moradores; estabelecimento das famílias no local, mas caso não haja possibilidade, há necessidade de diálogo e aviso prévio; retomar Parcelamento, Edificação e Uso Compulsório de imóveis ociosos na cidade, com aplicação de IPTU progressivo; analisar improbidade administrativa do prefeito de São Bernardo do Campo; fornecimento de infraestrutura básica, como água, esgoto e energia.
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Ações: Direito à Cidade, Defensores e Defensoras de Direitos Humanos
Eixos: Terra, território e justiça espacial