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Sem medidas institucionais para evitar despejos, Estado brasileiro expõe famílias de todo país à Covid


Após manifestação da Terra de Direitos, Labá e Observatório de Remoções relator especial da ONU pede que o Brasil cesse com as remoções durante a pandemia.

Em maio, 15 famílias sem teto da Comunidade das Mangueiras, no município de Ribeirão Preto (SP), foram tiveram suas casas demolidas pelos tratores e máquinas da Fiscalização Geral. Foto: Filipe Augusto Peres

Com mais de quatro meses de registro do primeiro caso de Covid-19 no país, o Estado brasileiro não elaborou, até o momento, medidas uniformizadas e de validade para todo território nacional que garantam a não realização de despejos e remoções de famílias durante a pandemia, aponta a Terra de Direitos e o Labá - Direito, Espaço & Política, Laboratório de Pesquisa Interinstitucional da UFRJ, UFPR e UNIFESP, em informe dirigido ao Relator Especial sobre Moradia Adequada vinculado ao Alto Comissariado das Nações Unidas (ONU), Balakrishnan Rajagopal.

No documento os subscreventes apontam as fragilidades presentes nas poucas medidas oficiais adotadas para o contexto de intensa crise epidemiológica para assegurar a permanência de povos tradicionais, famílias de áreas periféricas e rurais em suas casas e territórios durante a pandemia – condição essencial para contenção da Covid-19, como aponta a Organização Mundial da Saúde (OMS).

“Num cenário onde as principais medidas de combate à contaminação pelo coronavírus são distanciamento social, isolamento e adoção de medidas sanitárias, a segurança da posse é, mais do que nunca, central para garantia dos direitos à saúde e à vida”, aponta a assessora jurídica da Terra de Direitos, Daisy Ribeiro. 

Em manifestação divulgada nesta quinta-feira (09) o Balakrishnan Rajagopal pediu que o Brasil não realize despejos neste contexto de pandemia. A manifestação resulta da incidência da Terra de Direitos, Labá e organizações aglutinadas em torno do Observatório de Remoções. "O Brasil tem o dever de proteger urgentemente todos, especialmente as comunidades em risco, da ameaça do COVID-19, que afetou mais de um milhão e meio de pessoas no país e matou mais de 65.000", destaca o relator especial da ONU no direito à moradia. "Despejar com força as pessoas de suas casas nessa situação, independentemente do status legal de sua locação, é uma violação de seus direitos humanos", complementa. 

Conjuntamente com o Observatório assinam o informe a União dos Movimentos de Moradia de São Paulo e Ribeirão Preto, Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, Associação Rural Renascer da Estação Remanso dos Pequenos Agricultores de Araras, Central de Movimentos Populare, Movimento Sem Teto do Centro e Frente de Luta por Moradia. Outro informe também foi produzido e encaminhado pelo Habitat para a Humanidade.

Com registro oficial de 67.964  mortos em decorrência da Covid-19 e de 1.713.160 pessoas infectadas – dados contabilizados pelo Conselho Nacional de Secretarias de Saúde (Conass) nesta quarta-feira (08), a país se apresenta de diferentes formas para a pandemia. Estudos desenvolvidos por organizações e universidades com base nos registros de secretarias municipais da saúde apontam que a Covid-19 manifesta-se com mais intensidade e maior letalidade junto à população rural, negra, periférica e onde a oferta de serviços essenciais – como fornecimento de água, energia, saneamento e unidades públicas de saúde – é ainda escassa ou precária. São estes grupos que também estão mais suscetíveis às ações de despejo e remoções, por medidas judiciais, administrativas ou mesmo pela ação de grupos privados.

“Observou-se, a partir da experiência de outros países, que a capacidade dos Estados para enfrentar a pandemia está relacionada às estruturas de proteção social e garantia de direitos anteriormente existentes e àquelas desenvolvidas no contexto da pandemia”, aponta um trecho do informe.

Limitações institucionais, como a aplicação da Emenda Constitucional 95, conhecida como “teto dos gastos” por impor fortes restrições ao orçamento para áreas sociais, e outras medidas de contingenciamento tem - ao gerar o desmonte de serviços, estruturas e programas sociais -  comprometido a capacidade do país para enfrentar os impactos gerados pela crise social e sanitária, como aponta o relatório Brasil com baixa Imunidade, produzido pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), de análise dos gastos orçamentários da União.

Ademais, o débil enfrentamento à pandemia pelo governo federal tem como pilares ainda a minimização da gravidade da pandemia pelo grau máximo do Executivo e sua base de governo, as sucessivas mudanças na pasta da saúde – gestada de forma interina desde 15 de maio, as ações para limitar a autonomia de estados e municípios na adoção do isolamento social e mesmo a baixa execução orçamentária nas ações de enfrentamento, entre outros.

Frágil política habitacional
No informe as organizações destacam que a política habitacional brasileira sofreu revezes intensos nos últimos anos. “O Brasil que vemos em 2020 tem experimentado, nos últimos 4 anos, um rápido processo de desmonte de agendas de reforma urbana institucionalizada nos últimos 30 anos. Esse processo foi marcado pelos efeitos das políticas de austeridade, a extinção do Ministério das Cidades, a extinção de espaços de participação social, a desintegração de políticas setoriais relacionadas à agenda urbana e a extinção do caráter social do Programa Minha Casa Minha, Minha Vida”, aponta um trecho do documento.

A ausência do Estado no desenvolvimento de ações para efetivar o direito à moradia adequada, somada à forte ação do mercado, desenham um complexo panorama em que 8 milhões de famílias - cerca de 12% da população - não têm moradia e 35 milhões de pessoas não têm acesso ao abastecimento regular de água no país.

“Neste cenário de emergência sanitária é fundamental ação dos poderes públicos no sentido de proteger o direito à moradia e à segurança da posse, em condições adequadas de habitualidade, sob pena de o próprio Estado figurar como agente que contribui para agravar o quadro pandêmico, bem como o cenário de absurda precarização e exposição a que estão submetidas diversas famílias”, destaca a professora da faculdade de direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro e integrante do Labá, Júlia Ávila Franzoni. 

“A proteção do direito à moradia, garantindo condições materiais e legais às famílias vulnerabilizadas, é definidora da capacidade estatal de interrupção dos fluxos que evitam a propagação do contágio – é medida que nos interessa a todos, é interesse público fundamental”, complementa. 

Segundo relatos das 15 famílias a ação de despejo da Comunidade das Mangueiras não foi acompanhada pelo Conselho Tutelar ou da Secretaria de Assistência Social do município. Foto: Filipe Augusto Peres

Respostas do Estado para impedimento de remoções
Até o momento não foram formuladas e implementadas medidas pelo Estado de proibição de despejos durante o período da pandemia. Mesmo o dispositivo - relativamente tímido - do Projeto de Lei do Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de direito privado, que previa a suspensão de despejos locatícios durante a pandemia, sofreu veto presidencial (Lei 14.010/2020). Medidas legislativas mais abrangentes, como o PL 1975/2020, que prevê a suspensão de todos os despejos durante a pandemia, ainda aguardam apreciação, ainda que matérias relacionadas à pandemia sejam definidas como prioritárias pelas casas legislativas. 

Outra ação, ainda sem resposta, partiu da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), vinculada ao Ministério Público Federal. O órgão solicitou ao Conselho Nacional de Justiça, ainda em março, providências para a suspensão, em todo o país, do cumprimento de mandados coletivos de reintegração de posse, despejos e remoções judiciais ou extrajudiciais, seja em áreas urbanas ou rurais. Até o momento o CNJ não respondeu a solicitação. 

Em razão disso, contextos como o despejo das 50 famílias da Comunidade Taquaral, em Piracicaba (SP) concretizado em maio, ou a ameaça de remoção de 800 famílias de 40 comunidades quilombolas de Alcântara (MA), figuram como realidades permanentes. Sem uma determinação uniforme, válida para todo o território nacional, de algum dos três Poderes, os despejos - judiciais, extrajudiciais, individuais e coletivos - tem continuado a ocorrer em meio à pandemia, agravando a situação de famílias já vulneráveis, e mais afetadas pela crise de saúde e crise econômica. 

Com o fechamento das canais institucionais internos para diálogo entre poder público e sociedade - como conselhos e fóruns, a incidência junto à organismos internacionais tem sido um caminho possível para dar lastro à denúncia sobre a sistemática violação de direitos pelo governo. “A ausência de medidas institucionais amplas e cogentes para evitar os despejos durante a pandemia compõe o quadro de omissão e inércia do Estado brasileiro no enfrentamento à crise sanitária e precisa ser levada ao conhecimento da comunidade internacional”, sublinha a advogada da Terra de Direitos, Camila Gomes. 

Na manifestação do relator especial da moradia publicada nesta quinta Rajagopal sublinha a importância da aprovação de leis de impedimento de despejos neste contexto. "Encorajo os poderes legislativo e executivo no Brasil a priorizar urgentemente a proteção dos direitos humanos das comunidades em situações vulneráveis”, afirmou Rajagopal.



Ações: Direito à Cidade

Eixos: Terra, território e justiça espacial