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Quilombo Paiol de Telha denuncia irregularidades na consulta pública para construção de Hidrelétrica no Paraná


Proposto por grupo com conflitos históricos com a comunidade localizada no Paraná, empreendimento gerará impactos socioambientais à região.

Os projetos de construção das Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs) Foz do Capão Grande e Pituquinhas na região centro-sul do Paraná possuem, desde sua origem, ilegalidades na ausência de consulta à população afetada pelos empreendimentos, aponta a Comunidade Quilombola Paiol de Telha. Em audiência realizada pelo Instituto Ambiental do Paraná (IAP) na noite da última quinta-feira (05), na Câmara Municipal de Reserva do Iguaçu (PR), os integrantes do território tradicional a ser afetado pela Hidrelétrica de Capão Grande denunciaram irregularidades nos processos de consulta pública e prévia à população – etapa inicial e obrigatória no desenvolvimento de obras – e nos estudos de impactos ambientais, sociais, culturais e econômicos da obra às famílias quilombolas.

Propostos pelo Reinhofer Energia, empreendimento vinculado à mesma família que a Comunidade aponta como responsável por conflitos históricos de disputa pela terra do território na década de 70, os projetos preveem instalação de usinas hidrelétricas de pequeno porte na divisa entre os municípios de Reserva e Pinhão e junto ao Rio Capão Grande, com capacidade instalada entre 5 MW e 30 MW e área de reservatório de até 3 quilômetros quadrados, limites estabelecidos pela Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL). O órgão ligado ao governo federal é o ente regulador dos empreendimentos. Aos estados, cabe a análise de impactos dos projetos. No Paraná é de atribuição do IAP conceder, ou não, as licenças as licenças ambientais.

O mesmo órgão ignorou a recomendação do Ministério Público do Estado do Paraná, emitida no dia anterior, para suspensão da audiência. Na quarta-feira o MPPR afirmou que em “em análise não exauriente, já constatou graves e patentes inconsistências e omissões nos estudos”, por ausência de consulta à comunidade quilombola, bem como às comunidades faxinalenses e povo indígena, além de ter indicado haver ilegalidades com a ausência de estudo de impacto na comunidade quilombola Paiol de Telha

No início da exposição de Bruno Reinhofer, responsável pelo empreendimento, a Comunidade se retirou da audiência. “Eles vão mostrar um projeto que a comunidade não aceita que seja construído na comunidade”, declarou a quilombola Ana Maria da Cruz, também integrante da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq). O grupo retornou à audiência logo após a finalização da fala.

Durante exposição do empreendedor ligado à familia Reinhofer a Comunidade se retirou da audiência. Foto: Lizely Borges

Descumprimento da consulta prévia
Na avaliação da Comunidade a realização da audiência, em área urbana e período noturno – a revelia do parecer do MPPR - não se configura como consulta prévia, livre e informada, instrumento previsto na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), do qual o Brasil é signatário, e que dispõe sobre o direito das comunidades serem consultadas anteriormente à qualquer medida que afeta suas dinâmicas de vida.

“Em nenhum momento fizeram consulta. O IAP não poderia ter feito esta audiência pública à noite porque dificulta a vinda dos quilombolas. Somos mais de 500 famílias, a outra [integrante da Ciclo Ambiental] disse que somos 99. Por que não vai trazer esse povo simplão para cá, de mulheres e homens pretos? Então o empreendimento trouxe seus funcionários. Eles [o empreendimento e a empresa] falaram por duas horas e eu tenho pouco tempo. Não nos consultaram, é mentira”, indagou Ana Maria. As intervenções dos participantes foram delimitadas, no início da audiência, a três minutos cada um.

A crítica da liderança dialoga com a previsão da aplicação do instrumento previsto pela OIT. De acordo com o Organismo, a consulta prévia, livre e informada não se configura como um único evento e ao repasse de informações. Pressupõe a construção de um processo acordado pela comunidade e empreendimento, de tempo assegurado para que os grupos atingidos possam ser informados, elaborar o posicionamento coletivo e decidir sobre a realização do empreendimento.

“A ausência de realização de consulta é uma violação da legislação que, por si mesma, já deveria impedir a realização da audiência. Mas, além disso, os estudos contém outras flagrantes ilegalidades pois, por exemplo, omite que o território quilombola do Paiol de Telha será alagado, que o rio Capão Grande sofrerá severas consequências. Além disso, querem construir as PCHs em um dos poucos remanescentes florestais do Paraná, corredor ecológico em área estratégica para a conservação da biodiversidade no estado do Paraná”, destaca o assessor jurídico da Terra de Direitos, Fernando Prioste.

 A ausência de estudos de impacto socioeconômico na comunidade, além da ausência de consulta, desconsidera o planejamento de usos do território pela comunidade tradicional. De acordo com Decreto 4.887/2003, que dispõe sobre o processo de titulação de territórios quilombolas, é de direito da comunidade estabelecer um plano de etnodesenvolvimento da área. Com a obra, o desenvolvimento de ações voltadas ao turismo, por exemplo, passam a ter condicionantes estabelecidos pelo empreendimento privado.

"Em atividade na comunidade,  pudemos ouvir alguns dos seus planos futuros: a comunidade quer, entre outras atividades, realizar um projeto de turismo que permita a outros conhecer a natureza local e sua história.  Ou seja, o Paiol de Telha também tem projetos e não pode ter um futuro interditado em suas possibilidades depois de tantas violações de direitos humanos", destaca a assessora jurídica da Terra de Direitos, Maira de Souza Moreira.

Dados contestados
Na atividade representantes da Comunidade contestaram os dados apresentados pelo empreendedor e a Ciclo Ambiental, empresa contratada para elaboração de análise de impactos da obra. Segundo a empresa, em apresentação durante a audiência, “a maioria das adversidade e impactos ocorrem durante a instalação do empreendimento e são locais e temporários”, e de que na área residem apenas 99 famílias.

Com vasta experiência no trabalho com barragens, o quilombola Lauro Marques de Moraes destaca que os efeitos da obra são permanentes. Trabalhei 22 anos com barragem, sei muito bem o que é. Quando saiu a Barragem de Ivaí falaram que ia alagar 10 alqueires. Passado o tempo alagou muito mais e ainda não deixaram as pessoas mais terem acesso à área”, diz. Gera impactos no aumento de violência contra mulher, criança, dano ambiental, acaba com peixes, com tudo”, complementa. A análise de impactos da construção de PCHs também revelam um aumento de registros de exploração sexual de mulheres e crianças e de drogadição.

A diferença entre o anunciado oficial antes da construção das obras e os impactos são sentidos pela representante do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), Jucineide do Nascimento. Presente na agenda ela relatou aos participantes que a construção da Usina de Salto Santiago, localizada em Saudade do Iguaçu (PR), ainda repercute na vida dos atingidos. “Minha mãe perdeu tudo, foi uma das piores usinas em “compensar” os atingidos no Paraná [adoção de medidas de abrandar os impactos]. Eles falaram que a área de entorno da hidrelétrica não seria afetada. Na primeira chuva subiu mais de dois metros. A previsão falhou”, diz. “Eles diziam que trariam progresso para o município, o que não aconteceu. Para ter uma ideia, cerca de 70% famílias só tiveram energia elétrica depois de 25 anos, perto de 2004. Pra quem é essa energia que querem produzir?”, complementa. Ela relata que a energia gerada pela Usina é consumida por outros estados.

Para ela, os impactos da obra a uma comunidade quilombola - a estreito e histórico vínculo com o território – e detentora do título apenas de parte do território é ainda maior. “Não tem como colocar em tamanho como que a cultura e organização da comunidade vai mudar totalmente. A empresa diz que a comunidade vai se reorganizar depois e que o impacto não é tão grande, mas imagine uma comunidade que sofre com temperatura diferente da água, com mudanças na coloração dela, com circulação de muitas pessoas pelo território e outros tantos impactos sociais”, pondera Jucineide. A estimativa é a de que a obra reúna, no ápice de sua construção, mais de 400 trabalhadores na área. O projeto ainda prevê a com a construção de alojamento dos trabalhadores a poucos metros da comunidade. Diante do fato a Comunidade teme o aumento de conflitos e vulnerabilização das mulheres quilombolas. 

A contratação de mão de obra local – um dos pilares de defesa do empreendimento – também foi contestada. Barrageiro há cerca de vinte anos, Irani Antônio Skowranky relata que a geração local de empregos é fragilizada pela contratação pela empresa de mão de obra externa ao município. “O trabalhador não consegue o emprego, isso não é justo. Na hora de contratar eles contratam de fora, trazem o amigo do engenheiro”, denuncia.

Ainda de acordo com o desenho apresentado pela empresa cerca de seis Unidades de Conservação (UC) se encontram no entorno do projeto das PCHs.  A empresa relatou não ter medidas de atendimento aos impactos à comunidade quilombola, como também uma proposta de auxílio imediato aos serviços públicos dos municípios afetadas – como na área de saúde pública, educação e segurança – com o aumento do contingente populacional durante a construção.

Com faixas e gritos de ordem a Comunidade manifestou rejeição ao projeto da PCH no seu território. Foto: Lizely Borges

Exclusividade do ônus
O argumento de incremento no orçamento do município pela destinação do ICMS também foi contestada pelo público. De acordo com decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) no tema, o benefício é destinado para o município onde estão localizadas as casas de força das hidrelétricas. Construídas na divisa, as casas de força das duas PCHs estão localizadas, no projeto, no município de Pinhão. Assim, o município de Reserva do Iguaçu não receberá nenhum valor adicional de ICMS.

Com orçamento previsto na ordem de R$ 140 milhões, financiado com recurso público em até 80% pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), o apoio governamental à iniciativa privada destoa da destinação de verbas para a titulação de comunidades quilombolas no país. Sob comando de opositores à política quilombola, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) – órgão responsável pela titulação das comunidades – reserva apenas a cifra anual de R$3.423.082,00 para a titulação dos 1.716 processos de titulação abertos no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Em levantamento realizado pela Terra de Direitos, com o orçamento e a demandas apresentadas ao Incra o Brasil deve levar cerca de mil anos para titular a totalidade das comunidades quilombolas.
 

 

 



Ações: Quilombolas

Eixos: Terra, território e justiça espacial