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Por que a titulação do Quilombo Invernada Paiol de Telha é tão emblemática?


Primeira comunidade quilombola a ser parcialmente titulada no Paraná e no governo Bolsonaro, Paiol de Telha enfrenta uma luta de mais de 50 anos para reconquistar a terra dos antepassados. Titulação só foi realizada após determinação judicial.
 

Bisneta de Heliodoro e Feliciana, escravizados durante o século XIX, Ondina Marques agora sabe que poderá continuar sua vida na terra que era de seus ancestrais, onde nasceu e teve 12 filhos. Isso porque, no fim de abril, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) emitiu o título de parte do território do Quilombo Invernada Paiol de Telha, a primeira comunidade quilombola a ser titulada no Paraná.

A conquista do território, localizado na cidade de Reserva do Iguaçu (PR), vem em tempo. Com 104 anos, dona Ondina passou quase metade da vida lutando para retornar à sua terra. Morou durante quatro anos em um barraco de lona na beira da Rodovia PR 459, enquanto lutava pelo reconhecimento do direito ao território tradicional.

Agora, ela conquistou junto com outras 400 famílias o título de duas das 15 áreas que são reconhecidas como de direito dos quilombolas. O título dá o domínio coletivo de 225 hectares de terra que formam o território tradicional - uma pequena parte dos 2,9 mil hectares reconhecidos pelo Incra como de direito da comunidade, mas uma conquista histórica para as famílias. Agora, Dona Ondina pretende voltar para o território. “Seria minha alegria. Não morro sem estar aqui”.

Aos 104 anos, Dona Ondina Marques exibe com orgulho a cópia do título das terras do Paiol de Telha / foto: Fraciele Petry

Presidente da Associação Quilombola, João Trindade não esconde a alegria. “Conseguimos realizar nosso sonho. Espero em Deus que a gente consiga realizar muito mais. Hoje os negros [do Paiol de Telha] estão sendo falados no mundo inteiro”.

O reconhecimento ao direito dos quilombola é histórico em um estado onde quase 70% da população se declara branca.

Ainda assim, o Paraná é o estado da região Sul do Brasil com a maior população declaradamente negra. Entre os anos de 1991 e 2010, o número de pessoas que se identificam como negras também aumentou 73%, em razão de fatores sociais e políticos que possibilitam às pessoas reconhecerem-se como negras em um estado que praticou - e ainda pratica - o racismo institucional como forma de negar a existência e os direitos da população negra.

Primeiro e único quilombo titulado no Paraná, o Paiol de Telha acumula outros feitos que o tornam tão emblemático na luta pelo território: foi a primeira comunidade quilombola do Paraná a iniciar um processo para titulação da terra, em 2004, a primeira no Paraná a ser reconhecida pelo Fundação Palmares, em 2005, e agora é oficialmente o primeiro quilombo a ser titulado no governo de Jair Bolsonaro - um presidente que já declarou abertamente que em seu governo não haveria “um centímetro demarcado” para indígenas e quilombolas e que considera que quilombolas não serviriam “nem para procriar”.

A titulação do Paiol de Telha neste momento, no entanto, não representa uma forma de remissão do governo. Foi, na verdade, o cumprimento de uma determinação judicial, resultado de uma ação movida pela Associação Quilombola com assessoria jurídica da Terra de Direitos. 

No fim de março, a Justiça Federal de Curitiba estabeleceu ao Incra a data de 2 de maio como prazo final para a titulação da primeira parte do território, uma vez que essas porções de terra já haviam sido adquiridas pelo Instituto. A emissão do título dependia apenas da autorização e da assinatura do presidente da autarquia, João Carlos Jesus Corrêa. Caso a determinação judicial fosse descumprida, o Incra pagaria uma multa de R$ 600 mil por dia.

Agora, a comunidade espera que a União cumpra outra determinação da juíza Silvia Salau Brollo: até agosto, R$ 23 milhões devem ser disponibilizados ao Incra para que seja adquirida - e titulada - outra parcela do território quilombola. A União já recorreu dessa decisão, que será julgada em breve pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4), em Porto Alegre. 

 

Após enfrentar a expropriação de terras e superar os conflitos fundiários com a empresa que tinha propriedade da terra, as famílias do Paiol de Telha continuarão a encarar a morosidade do Estado e o baixo orçamento da política quilombola para conquistar a nova área. Terão ainda de lidar com os interesses econômicos em volta e enfrentarão a possibilidade de construção de uma pequena central hidrelétrica no território.

Uma luta antiga

As terras localizadas a 13 km do Centro de Reserva do Iguaçu e 100 km da sede do município de Guarapuava são chão pra muita resistência. Foi ali que pessoas escravizadas trabalharam de forma forçada na fazenda chamada Capão Grande, no século XIX. Dona da fazenda e sem herdeiros, Balbina Francisca Siqueira deixou 3.600 alqueires de terra para onze trabalhadores escravizados libertos após o falecimento. O processo de apropriação de terras iniciou cedo: sobrinho de Balbina, primeiro prefeito de Guarapuava e herdeiro do restante da fazenda, Pedro Lustosa repassou aos quilombolas apenas parte do que herdaram - a eles restou apenas as terras do “fundão”, como era chamada a porção da fazenda.

 

 Ali, os quilombolas estabeleceram suas famílias, cultivavam suas plantações e mantiveram suas tradições. Um processo de expropriação de terras intensificado entre as décadas de 1960 e 1970 resultou na expulsão das famílias do território. Sem ter para onde ir e com desejo de voltar a terra conquistada pelos seus ancestrais, as famílias do Paiol de Telha iniciaram então uma sequência de ocupações da terra e, consequentemente, de despejos. Durante 20 anos, parte das famílias também esteve instalada em barracos de lona na ocupação conhecida como “Barranco”.

A reivindicação das famílias quilombolas sobre a área acirrou os conflitos com a Cooperativa Agrária, nova proprietária do terreno. As brigas travadas na Justiça com a empresa levaram o nome do Paiol de Telha para outras partes do país. Uma ação judicial movida pela Cooperativa Agrária levou as famílias quilombolas até Porto Alegre em 2013 para reafirmar seus direitos.

Foi lá que os desembargadores do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) consideraram que o  Decreto Federal 4.887/2003 - que regulamenta o procedimento de titulação dos territórios quilombolas no Brasil - está de acordo com o que prevê a Constituição Federal. A decisão foi parte do julgamento de ação movida pela Cooperativa Agrária, que argumentava que o decreto era inconstitucional e, por isso, o Incra não poderia dar continuidade ao processo de titulação do Paiol de Telha.

 

Pouco tempo depois dessa vitória os quilombolas tiveram outra conquista: em 2014 foi publicada pelo Incra a Portaria de Reconhecimento de 2,9 mil hectares do território tradicional. No mesmo ano, a presidenta Dilma Rousseff assinou um decreto autorização a desapropriação de 1.460  hectares dessa área.

Mesmo com o reconhecimento do direito dos quilombolas sobre a terra, e após a realização de um acordo judicial em ação de reintegração de posse que permitiu que eles permanecessem - de forma provisória - na área, as famílias ainda enfrentavam a insegurança e as péssimas condições de moradia pela falta do título.

A aquisição da área pelo Incra e a indenização de R$ 10,2 milhões para a Agrária – a cooperativa agroindustrial que tinha propriedade do imóvel – deve contribuir para diminuir os conflitos na região. “Aqui tinha muitos fazendeiros que diziam que nós nunca mais íamos ver essas terras. Hoje nós estamos aqui, contentes e em cima do que é nosso”, conta João Trindade.

 

Mas a área titulada ainda é pouca pelo tamanho da necessidade – e da luta – dos quilombolas do Paiol de Telha. As famílias seguem reivindicando a titulação dos outros 1.235 hectares que já estão autorizados a serem desapropriados. “Nós temos mais de 400 famílias. Isso é muito pouco pra trabalhar nessas áreas [tituladas]”, destaca a quilombola Ana Maria Cruz, que integra a Coordenação Nacional das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq).

A primeira do Paraná

A titulação de parte do Paiol de Telha dá novo ânimo às outras comunidades quilombolas no Paraná, que ainda enfrentarão um longo caminho até terem efetivado o direito ao território tradicional. Dos 38 quilombos reconhecidos pela Fundação Palmares no estado, nenhum está em fase avançada do processo de titulação: apenas três comunidades já tem o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID), e somente duas avançaram para um passo seguinte, com a assinatura de portaria de reconhecimento, que reconhece os limites territoriais.

::: Entenda | Passo a passo da titulação de territórios quilombolas

A morosidade nos processos de titulação abertos no Incra parece ser a regra entre os quilombos do Paraná. Das 38 comunidades do estado, 30 delas iniciaram o processo de titulação há mais de 10 anos, sem que tenha havido algum andamento significativo do processo.

O grande tempo até que o Estado titule os quilombos e efetive o direito previsto na Constituição Federal - mais precisamente no artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias - dá as comunidades quilombolas um cenário desanimador. Estima-se que o Brasil levará cerca de mil anos para titular todos os 1.716 territórios que estão com processo de titulação abertos no Incra.

A falta de orçamento para a política de titulação dos territórios quilombolas também é outro empecilho na efetivação desse direito: em 2019, apenas R$ 3,4 milhões de reais foram previstos para a área. O valor é irrisório, uma vez que é destinado para titulações em todo o Brasil - seria suficiente para adquirir apenas 15% do território do Paiol de Telha em que já há autorização para desapropriação. Esse cenário já foi denunciado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), que questionou o Estado brasileiro para que efetive um plano nacional para titulação de todas as comunidades quilombola do Brasil em um prazo razoável.

Enquanto os territórios não são titulados, os quilombolas convivem com o medo e a insegurança. Na cidade de Doutor Ulysses, na Região Metropolitana de Curitiba, 17 famílias do Quilombo Gramadinho, no Território Quilombola Varzeão, convivem com a possibilidade de um despejo, pois há uma ação de reintegração de posse já transitada em julgado contra a comunidade.

O despejo está suspenso por meio de uma liminar da Justiça Federal de Curitiba, mas pode ser efetivado caso a decisão seja cassada. Advogado popular da Terra de Direitos, Fernando Prioste, destaca que, dentro das lutas pelo direito quilombola, é importante que a disputa acontece também dentro do Poder Judiciário. A titulação do Paiol de Telha por meio de medida judicial e a suspensão do despejo em Gramadinho são exemplo do êxito da articulação possível entre quilombolas e a assessoria jurídica popular.

Prioste, que atua pela Terra de Direitos nos casos, ressalta o papel do Poder Judiciário de garantir a efetivação do direito a quilombolas, cujos interesses muitas vezes não são considerados nos espaços do Poder Executivo e Legislativo. “No atual cenário de dificuldades, o Poder Judiciário tem o dever de garantir a efetivação do direito quilombola previsto na Constituição Federal: não só para garantir a titulação, mas também para assegurar às comunidades a posse de seus territórios tradicionais antes de serem titulados”, aponta.

Famílias do Paiol de Telha reivindicam também a permanência em uma terceira área, ocupada desde 2017. / foto: Franciele Petry

Em breve o judiciário terá novamente em mãos o destino das famílias do Paiol de Telha. O Tribunal Regional Federal da 4ª Região irá julgar um recurso em ação de reintegração de posse movido pela Cooperativa Agrária para despejar 90 famílias de um trecho de terra reconhecido como território quilombola, mas que ainda não está titulado. Na ação, a empresa alega que a área ocupada pelos quilombolas pode deixar “em situação de vulnerabilidade” os agricultores parte da Cooperativa. O quilombolas, no entanto, justificam a necessidade de poderem usufruir de uma porção maior da terra que lhes é de direito, uma vez que os 225 hectares de terra titulados serão distribuídos entre cerca de 400 famílias. Com isso, cada família teria que plantar seu sustento em meio hectare.

Nova disputa

Agora, com o título de parte das terras em mãos, os quilombolas do Paiol de Telha enfrentam outra ameaça ao seu território. O que é riqueza natural da área pode se tornar fonte de exploração para o mesmo grupo social que no passado oprimia a comunidade. Cercada de rios, a comunidade pode ser atingida pela construção de duas pequenas centrais hidrelétricas (PCH) - uma delas dentro do próprio quilombo.

Projeto da empresa Reinhofer Energia LTDA, a PCH Foz do Capão Grande está prevista para ser construída no rio de mesmo nome, que faz limite com o território quilombola. Mais de 13 hectares da comunidade serão alagados pelo empreendimento. Além da diminuição das terras, as famílias podem ser impedidas de acessar as águas do rio e sofrerão outros impactos diretos e indiretos na construção e na operação da central hidrelétrica Da mesma forma, o Paiol de Telha será atingido pela PCH Pituquinhas, a 400m de distância da outra obra.

Mapa apresentado apresentado no processo 01420.005696/2013-13

O projeto dos empreendimentos já está em processo avançado, com Estudos e Relatórios de Impactos Ambientais já finalizados. No entanto, diretrizes da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho determinam que indígenas e povos e comunidades tradicionais sejam consultados previamente no caso de obras que impactarão seus territórios. No caso de quilombolas, o processo de Consulta Livre, Prévia e Informada é conduzido pela Fundação Cultural Palmares.

As famílias do Paiol de Telha já indicaram que querem participar desse processo  de consulta mas que, para que tenham segurança do cumprimento dos acordos estabelecidos, o território seja integralmente titulado antes da realização da consulta. “Queremos preservar o que ainda resta de Reserva Ambiental”, explica Ana Maria Cruz.

Em Santarém, no Oeste do Pará, a pressão dos quilombolas fez com que a Justiça Federal suspendesse o Licenciamento Ambiental de um empreendimento portuário que impactaria ao menos 12 comunidades quilombolas na cidade.  

Planos futuros

Mesmo com parte da terra titulada, a luta do Paiol de Telha ainda é gigante. As famílias seguem a reivindicando a titulação dos outros 1.235 hectares que já estão autorizados a serem desapropriados e dos outros 1,4 mil hectares que aguardam o decreto de desapropriação.

Além disso, as famílias vão agora atrás de concretizar grandes planos com o território titulado. Um dos primeiros passos a serem dados pelas famílias é cobrar que, com o documento em mãos, as empresas de energia elétrica e saneamento básico forneçam esses serviços na comunidade.  “A gente sai do mínimo [da necessidade de ter a terra]  e passa a construir qualidade de vida para as pessoas”, conta a quilombola Isabela Cruz

Um dos projetos que caminha na comunidade é a construção de uma escola rural quilombola. O recurso para a construção deve ser disponibilizado pelo governo do estado até o fim do ano. Isabela explica que a escola será um espaço de produção e troca de conhecimento entre crianças, jovens e adultos, com previsão de oferta de aulas do ensino básico até o ensino médio, além de um programa de alfabetização e escolarização de jovens e adultos. O projeto seguirá o modelo do Colégio Estadual Quilombola Diogo Ramos, da Comunidade João Surá, em Adrianópolis, que atualmente conta também com o curso de Licenciatura em Educação do Campo com habilitação em Ciências da Natureza.

Segundo Isabela – que é também estudante de Direito pelo Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária –, a pedagogia que será adotada na escola do Paiol de Telha será criada com a comunidade. “A gente quer também trazer cursos - não só da educação formal do Brasil -, mas também atividades diferenciadas”.

 A intenção é que também sejam instalados equipamentos de informática e também uma biblioteca, que tenha, entre outros materiais, obras voltadas para a história da população quilombola.

Outro projeto que deve beneficiar as famílias do quilombo é a proposta de uma agroindústria comunitária, pensada por meio de uma parceria com a Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS). Atualmente, mesmo com a pouca terra, as famílias já produzem hortaliças e outras variedades como mandioca, batata doce, abóbora, além da criação de animais. A quilombola Jucemara dos Santos explica que a proposta é que esses alimentos sejam embalados e vendidos in natura ou seja usados como base para outros produtos, como geleias ou conservas. “A gente vai poder produzir e comercializar com o rótulo de um produto vindo de um quilombo. Tudo livre de agrotóxico”, conta.

A comunidade também tem expectativa de acessar outras políticas públicas, como de habitação rural, mas sabe que vai enfrentar dificuldades em razão de cortes orçamentários. Em 2019, os recursos voltados para fomento do desenvolvimento de quilombos e outras comunidades tradicionais – previstos dentro da pasta de Promoção da Igualdade Racial e Superação do Racismo, no Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos - caiu pela metade. Se em 2018 foram previstos R$ 7,1 milhões para a área, a Lei Orçamentária de 2019 disponibilizará apenas R$ 3,4 milhões. “No atual cenário político as perspectivas não são animadoras, mas vamos aguardar e ter esperanças”, destaca Ana Maria. Mas ela indica que apesar das dificuldades, o Quilombo Paiol de Telha permanecerá resistindo. “A Comunidade agora mais do que nunca precisa se unir”, pontua.

Material especial produzido pela Terra de Direitos

Texto: Franciele Petry Schramm | Vídeos: Lucas de Souza e Lizely Borges | Arte: Brenda dos Santos | Contribuição: Assessoria Jurídica da Terra de Direitos e Isabela Cruz

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Ações: Quilombolas
Casos Emblemáticos: Comunidade quilombola Paiol de Telha
Eixos: Terra, território e justiça espacial