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Mesmo com posse assegurada pelo Incra ao Paiol de Telha, desembargadora do TFR-4 vota a favor do agronegócio


Comunidade quilombola de Reserva do Iguaçu (PR) luta para manter a posse da terra e viabilizar a continuidade da titulação do território tradicional. Julgamento foi suspenso com pedido de vista.

Comunidade quilombola reivindica posse coletiva do território tradicional há décadas. Foto: Lizely Borges

O julgamento pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4) de ação sobre a posse de três áreas da Comunidade Quilombola Invernada Paiol de Telha foi suspenso na tarde desta terça-feira (12). Movido pela Cooperativa Agrária, o recurso de apelação busca reaver o território tradicional já reconhecido pelo Estado brasileiro como de direito da população tradicional. No julgamento, o desembargador federal Rogério Favretto pediu vista para análise mais detalhada da ação. Não há previsão de quando o julgamento deve ser retomado.

O recurso em julgamento busca reverter uma decisão desfavorável à Cooperativa, no âmbito de uma ação de interdito proibitório. Com ida para justiça federal em 2015, a ação requeria que as famílias da Comunidade quilombola fossem impedidas de residir na área em julgamento até encerramento do processo de desapropriação e do pagamento da indenização à Agrária – uma das etapas finais do longo processo de titulação de um território tradicional quilombola. Com decisão favorável à comunidade pela 11ª Vara de Curitiba (PR), a Cooperativa busca - em 2ª grau - reverter a decisão inicial. Em manifestação dirigida ao Tribunal Federal, o Ministério Público Federal opinou pela rejeição do recurso movido pela Agrária. Na prática a ação da Cooperativa, caso acolhida pelo Tribunal, busca a reintegração de area com a expulsão das 50 famílias que residem atualmente no local.

Na sustentação oral durante o julgamento a assessoria jurídica da Terra de Direitos, organização que assessora a comunidade Paiol de Telha nos processos de regularização fundiária, destacou que a área em questão já está sob posse e em nome do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) – num avançado estágio do processo de desapropriação e indenização de área quilombola. Com isso, a posse não é mais da Cooperativa. Assim, do ponto de vista jurídico, a ação julgada pelo Tribunal Regional Federal perdeu validade.

Já em 2021 a autarquia obteve a imissão de posse das áreas que ainda não foram tituladas. Ainda que não seja propriamente a titulação da área, a imissão antecipa os efeitos de titulação até que a efetiva titulação aconteça, permitindo às famílias o exercício da posse tradicional quilombola sobre essas áreas. Isto porque, como medida liminar, possibilita que a autarquia federal transfira a posse das matrículas para a associação quilombola da comunidade. Com isso, o andamento do processo já permitia - em termos legais - o direito de ocupação das áreas e organização da vida no território tradicional pelas famílias.

Atenta ao julgamento, a comunidade reafirma a continuidade de luta em defesa da área em julgamento, onde residem atualmente 50 famílias, e em toda ao restante do território reconhecido pelo Incra em 2014, por meio da Portaria de Reconhecimento nº 565, a área como território quilombola Paiol de Telha. Até o momento apenas 225 dos 2,9 mil hectares reconhecidos pela autarquia foram titulados.

“É muito importante a gente permanecer nesta terra, os nossos ancestrais já saíram expulsos daqui e nós não queremos que isso aconteça de novo. A gente vai lutar de todas as maneiras para continuar em cima da nossa terra até termos o título de toda a área a que temos direito”, destaca a presidente da Associação da comunidade, Elisete de Siqueira Ribas. A liderança relata ainda que as famílias têm suas casas, plantações e modos de vida já estruturados na área.

Mesmo com decisão liminar pelo Supremo Tribunal Federal (STF) de suspensão de despejos e remoções de áreas urbanas e rurais até 31 de outubro, em razão dos efeitos da pandemia, e que a posse das áreas em julgamento não seja mais da Cooperativa, qualquer ameaça que ronda a comunidade – ainda marcada pela memória da expulsão no passado do território tradicional – é vista com grande preocupação pelas famílias.

“Temos sempre a impressão de que começamos do zero, é um desespero total. O povo já está na terra, produzindo e fica nessa incerteza. O Incra que precisa resolver isso agora”, destaca a liderança da comunidade e integrante da coordenação executiva da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), Ana Maria da Cruz.  

“Embora a desembargadora relatora do processo tenha julgado contra a comunidade, a expectativa da comunidade é de reversão do cenário após pedido de vista do desembargador Rogério Favretto. Com isso, espera-se que os votos restantes reconheçam o direito da comunidade na posse do território tradicional e o estágio avançado de indenização da área em favor da Agrárias”, destaca a assessora jurídica da Terra de Direitos, Kathleen Tie. 

A desembargadora votou pelo acolhimento do recurso da cooperativa, em desfavor à comunidade quilombola. Foto: web

Defesa do agronegócio

Ainda que tenha sido destacado que a área em julgamento está sob posse do Incra, a desembargadora Marga Tessler acolheu o recurso movido pela Cooperativa. O voto foi manifestado antes do pedido de vista de Favretto. Com o acolhimento do recurso, a magistrada transfere o ônus do não pagamento da indenização da área à Agrárias pelo Incra – etapa atual – para as famílias que residem na área em julgamento, já que o recurso previa reintegração.

“Já esperávamos o voto da desembargadora. Em todas as vezes que o direito ao território Paiol de Telha esteve em discussão no Tribunal Federal ela votou contra a comunidade, contra os movimentos sociais. Ela vota com o agronegócio, não tivemos surpresa”, destaca Ana Maria. Em julgamento em 2019, também sobre direitos territoriais da comunidade, a desembargadora acolheu o argumento do Incra de que a paralisação da titulação Paiol de Telha era em razão do contingenciamento orçamentário. O posicionamento da magistrada foi rebatido à época por Favrettro e pelo procurador regional da República, Paulo Gilberto Leivas.

“A restrição orçamentária é realidade há muito tempo em territórios nacional atingido as diferentes esferas, contudo tal fundamento é usado como escusas para implementação de políticas públicas. Porém, ao discursos de restrição orçamentária não são poucas as notícias de destinação de verbas para implementação de projetos envolvendo vultuosos quantias beneficiando outras setores da sociedade”, destaca o desembargador durante manifestação do seu voto.

No ano de 2021 o governo executou a rubrica de apenas R$ 956,3 mil para fins de desapropriação de áreas quilombolas, de acordo com dados mapeados pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc). O baixíssimo valor, na prática, significa a paralisação da titulação dos territórios tradicionais. Opositor à titulação quilombola, o presidente Jair Bolsonaro (PL) cumpre à risca a promessa feita em campanha eleitoral de não assegurar “nem um centímetro para quilombola ou reserva indígena”.  Em polo oposto, o orçamento previsto para execução do Plano Safra 2022/2023 é da ordem de R$ 341 bilhões, com maior volume destinado ao agronegócio.

De acordo com a assessoria jurídica da Terra de Direitos, a Cooperativa poderia desenvolver com outras ações para pressionar a União para pagamento da indenização da área, com menor prejuízo às famílias, como ingressar na Ação Civil Pública, como terceira parte interessada ou propor uma ação ou mesmo seguir em acordos com o Incra, entre outras possibilidades. 


 



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Ações: Quilombolas
Casos Emblemáticos: Comunidade quilombola Paiol de Telha
Eixos: Terra, território e justiça espacial