Consulta prévia aos povos indígenas não é entrave ao desenvolvimento, destacam organizações no STF
Em julgamento de ação movida pelo Governo de Roraima, coletivo enfatiza a constitucionalidade da Convenção 169 da OIT
Organizações sociais destacaram, em julgamento na tarde desta quarta-feira (03) pelo Supremo Tribunal Federal da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5905, a convergência entre a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre Povos Indígenas e Tribais, que dispõe sobre direito à consulta prévia, livre e informada, ao território, saúde, educação e políticas públicas direcionadas, entre outros, a povos indígenas, quilombolas e povos e comunidades tradicionais, e a Constituição Federal.
Ajuizada em março de 2018 pela então Governadora do Estado de Roraima, Suely Campo (PP), a ação tem por objetivo que as normativas nacionais de ratificação e promulgação da Convenção no Brasil - Decreto Legislativo nº 143/ 2002 e Decreto nº 5.051/2004 - sejam reconhecidos como parcialmente inconstitucionais. A ADI questiona, com mais ênfase, o instrumento da consulta prévia. Determinada pela Convenção 169, a consulta prévia assegura a escuta aos povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais diante de medidas – administrativas, legais ou privadas – que afetem os modos de vida destas populações.
Na ação a autora argumenta que “condicionar a execução de obras públicas à consulta prévia dos povos indígenas interessados, têm acarretado prejuízos estruturais ao desenvolvimento socioeconômico do Estado de Roraima”, aponta um trecho da ação.
Os argumentos contidos na ação e na defesa da requerente foram amplamente combatidos nas sustentações orais de organizações e órgãos participantes do julgamento. “A consulta prévia não é obstáculo ao desenvolvimento regional, o que ela impõe é um dever de respeito, escuta e consideração às populações tradicionais nos processos decisórios, e está longe de representar qualquer tipo de interferência indevida no Pacto Federativo”, enfatizou o advogado da Advocacia Geral da União (AGU), Marcelo Vinicius Miranda Santos.
Uma das motivações para o ingresso da ação no Supremo pelo Governo de Roraima, a Linhão do Tucuruí terá a construção concluída nos próximos meses, aponta a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, “tendo, inclusive, o procedimento de consulta realizado, o que evidencia que o procedimento de consulta livre deve informada em nada obstou que fosse entregue um empreendimento elaborado pela administração pública”, reforça o advogado Ricardo Baravieira. Com 725 km de extensão e ligação entre estados de Roraima, Pará e Amazonas, o empreendimento prevê a instalação de 1.390 torre, com impactos diretos a territórios indígenas, entre eles a Terra Indígena Waimiri Atroari.
Constituição e Convenção em convergência
O advogado da Apib ainda destacou que, diferente do que aponta a ação, a Constituição Federal e a Convenção 169 convergem nos compromissos determinados ao estado. Baravieira destaca que a Constituição prevê no Artigo 5º a incorporação dos tratados internacionais a suas normativas internas. “Neste aspecto, ao contrário do que sustenta o Estado de Roraima, não há violação à soberania, mas sim um cumprimento de compromissos constitucionais e internacionais assumidos pelo Estado brasileiro”,
Para o advogado da Defensoria Pública da União, Gustavo Zortea da Silva, ambas normativas ainda convergem – ao determinar a consulta prévia – no reconhecimento do direito de autonomia dos povos em opinarem sobre fatos que os afetem. “A Convenção e a Constituição, é relevante destacar que ambas estão sob idêntico paradigma da publicidade, que rompe o modelo etnocentrista de assimilação que era marcado pela superioridade e prevalência de uma cultura sobre outra”, aponta
Para traçar um paralelo ao que o advocado aponta como “imposição do silêncio” ele rememora a ausência de consulta prévia a povos indígenas afetados pela construção da Hidrelétrica Teles Pires, na fronteira dos estados do Pará e Mato Grosso. Na construção do empreendimento as corredeiras inundaram cemitérios, locais sagrados para os Povos Munduruku. “E para adotar um olhar intercultural é como se o estado, para a realização de algum empreendimento, promovesse a destruição do Santuário Nacional de Aparecida ou da Igreja de São Francisco de Assis”, conjectura.
“Não é possível que o próprio Estado sempre opte por essa dinâmica de desrespeitar o direito à consulta e ficar no aguardo sobre se haverá algum tipo de judicialização para suspender ou barrar o empreendimento. Os Estados e a União precisam se amoldar à Convenção 169 da OIT. É necessário que Estados e União incorporem em suas estruturas administrativas órgãos permanentes habilitados à realização da consulta prévia”, aponta.
Conhecedores dos territórios
Para o advogado Carlos Marés, a consulta prévia aos povos indígenas, quilombolas e povos tradicionais também assegura outras dimensões. Em razão de uma relação de forte vínculo entre povos tradicionais e os territórios onde residem, são os povos e comunidades tradicionais sujeitos altamente qualificados para analisar e apontar sobre impactos das medidas e obras.
“A consulta prévia é absolutamente necessária para saber, entender e perguntar aos povos qual o impacto efetivo que ações, atos ou leis podem gerar à essa relação desse povo com a natureza. O Estado brasileiro tem de perguntar exatamente a quem sabe os impactos que será causado [pela medida ou obra]”, aponta o advogado representante das organizações Terra de Direitos, Federação das Comunidades Quilombolas do Estado de Minas Gerais N'Golo e Malungu Coordenação das Associações das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Pará. As organizações figuram na ação como amicus curiae (amigos da Corte), com fornecimento de informações de subsídio ao julgamento pelos ministros.
Ele ainda destaque que a garantia da consulta prévia apresenta um potencial para que a sociedade também compreenda os impactos socioambientais de empreendimentos, a partir dos saberes dos povos. “Nos tempos em que vivemos, tempos de emergência climática, tempos de grande devastação da natureza e dificuldades de vida humana, é fundamental essa consulta, porque esses povos na sua relação com a natureza podem responder os impactos de modo qualificado. Não se trata de perguntar se querem ou não querem, mas se trata de saber o impacto que causa. E assim, nós, sociedade civilizada, podemos aprender com a outra civilização como conviver com a natureza”, enfatiza.
Próximos passos
Após escuta a sustentações orais, o relator da ação, o ministro Luiz Fux deve apresentar um relatório da ação. Na sequência, os demais ministros devem se manifestar. Não há previsão de retomada do julgamento.
Ainda que localizada para o estado de Roraima, caso a ação seja julgada como procedente pelo Supremo, a decisão pode balizar outros julgamentos referentes aos demais povos, como as comunidades quilombolas. Com isso, a Convenção 169 deixaria de ter validade e a orientar parâmetros e políticas públicas no país para estes segmentos.
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Eixos: Política e cultura dos direitos humanos