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Com negação do racismo, governo se abstém da obrigação de garantir direitos fundamentais à população negra


Discursos racistas de autoridades públicas ratificam práticas de grupos sociais autoritários. Sociedade emite informe à ONU.

Manifestação pela morte do adolescente Guilherme Silva Guedes, morto em uma ação policial na zona sul de São Paulo. Foto: Mídia Ninja

 

A supressão de dados completos sobre a manifestação da pandemia em território nacional na plataforma mantida pelo Ministério da Saúde figura como um dos destaques dos informes brasileiros realizados ao Alto Comissariado da Organização das Nações Unidas, durante a programação da 44ª sessão do Conselho de Direitos da ONU, entre os dias 30 de junho a 17 de julho.

Mesmo com a determinação do Supremo Tribunal Federal (STF), no dia 09 de junho, do retorno ao ar de dados totais do número de casos e de mortes causadas pela Covid-19 – após mutilação dos dados pelo governo como tentativa de maquiagem da grave crise epidemiológica, -  dados centrais como a manifestação da doença na população negra ainda não tem sido adequadamente coletados e divulgados no Painel Coronavírus do Ministério da Saúde.

Ainda que a Justiça Federal do Rio de Janeiro, no início de maio, tenha determinado como obrigatória a inclusão de dados de raça e etnia nas notificações de coronavírus em todo território nacional  – em atendimento à um pedido da Defensoria Pública da União e do Instituto Luiz Gama, a cor da pele é preenchida em apenas dois terços das fichas de notificação de casos. Ainda assim, mesmo com um registro parcial, pretos e pardos somam 60,7% dos óbitos registrados no Sistema Sivep-Gripe, do OpenDataSUS, mantido pelo Sistema Único de Saúde.

A alta letalidade de quilombolas também tem sido ignorada pelo governo federal. Dados de junho deste ano dão conta de 125 mortes, com 1206 diagnósticos confirmados e 197 em investigação. Os números não são provenientes das secretarias ou do Ministério da Saúde, mas da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq). Ainda segundo a Articulação a taxa de óbitos nas comunidades quilombolas é de 11,09%: quase o triplo da taxa nacional de 4,34%.

Mesmo o fornecimento de materiais de higiene, alimentos e apoio financeiro às comunidades quilombolas – essenciais à contenção da pandemia - tardam a chegar para esta população. Sem sentir-se intimidado pela opinião pública, Jair Bolsonaro (sem partido) tem postergado a sanção presidencial do Projeto de Lei 1142/2020 aprovado pelo Senado Federal há mais de 20 dias. Sancionada e implementada, a medida que estabelece um plano emergencial para proteger indígenas, quilombolas e demais comunidades tradicionais do coronavírus poderia amenizar os impactos da pandemia junto às comunidades.

Com cerca de quatro meses de ocorrência dos primeiros casos de Covid-19 em território nacional, organizações sociais, coletivos negros e instituições de pesquisa tem reivindicado e apontado sistematicamente a necessidade do desenvolvimento de ações integradas de contenção da pandemia dirigidas à população negra. Os próprios dados coletados pela pasta da saúde poderiam orientar a execução de planos específicos. No entanto, o estado brasileiro não apresentou, até o momento, ações para fazer frente à maior vulnerabilidade da população negra à grave crise epidemiológica, como aponta o Observatório de Direitos Humanos e Crise Covid.

"A não construção pelo governo federal de um plano de ações integradas para contenção da pandemia, especialmente dirigidas às populações vulneráveis, evidencia quais vidas o Estado brasileiro busca preservar e quais expõe a grave crise epidemiológica que o Brasil e mundo vivem", destaca a integrante da coordenação da Terra de Direitos, Élida Lauris.

Em conjunto de manifestações pelo Brasil e pelo mundo a ação genocida dos agentes públicos de segurança foi um dos destaques. Foto: Renato Cortes

Um Estado que mata
A negativa do governo federal em reconhecer as vulnerabilidades históricas e acentuadas durante a pandemia da população negra, e desta forma se abster no desenvolvimento de políticas, se inscreve não apenas ao enfrentamento da Covid.

Um importante estudo sobre saúde da população negra foi retirado, entre os meses de abril a junho deste ano, da página do Ministério da Saúde. De escuta à mais de 52 mil brasileiros, o levantamento trazia importantes indicadores da desigualdade social. Ainda sob gestão do ministro da pasta, Luiz Mandetta, foi extinto o Departamento de Apoio à Gestão Participativa (Dagep). Criado na década de 90, o espaço era voltado para avaliar e cumprir a política nacional de saúde voltada para populações negra, do campo e da floresta, de gays, lésbicas, bissexuais, transgêneros e travestis, ciganos, população em situação de rua e outros.

“Essa forma de gestar a política para esta população, gestar a política com ausência de política para a população negra nada mais é do fortalecimento e manifestação do racismo. Vivemos um processo de necropolítica, no qual o Estado escolhe quem morre e quem vive: a população negra. Vivemos em um país que não aceita o racismo e é praticado pelo Estado e incentivado em larga escala”, destaca a integrante do Fórum Nacional de Mulheres Negras, Clátia Vieira.

As organizações ainda denunciam o Estado não apenas quando ele, deliberadamente, deixa a população negra morrer, mas quando é o ator social que opera a morte. Com a população negra, especialmente homens negros como principal vítima, as operações policiais em comunidades do Rio de Janeiro resultaram em 290 mortes nos meses de março e abril – ainda que parte significativa da população estivesse em isolamento em suas casas neste período por recomendação de autoridades e a taxa de crimes tenha diminuído na capital – já que quando a taxa está alta é esse o argumento para as incursões policiais pelas comunidades. O número de 290 assassinatos representa um aumento de 13% das mortes registradas em 2019 – ano que já acumula o recorde de registros em relação aos anteriores.

“Cada corpo que é exterminado pelo Estado traz sérias consequências para as mulheres. O Estado brasileiro precisa se debruçar sobre o que movimento negro feminista destaca há muitos anos, que é quando o estado tomba o homem negro por muita das vezes deixa o complicador para essa família negra. Muitas vezes essa família precisa sair do território, ela perde casa, perde escola, emprego – tem toda uma complexidade de perda de patrimônio, de referência, e que o estado não fala sobre isso”, destaca Clatia sobre o perverso efeito de do genocídio da população negra mesmo após quando os corpos já foram tombados.

Uma das recorrentes práticas racistas é a negação da humanidade da população negra. Foto: Mídia Ninja

Negação e naturalização do racismo
Como um arranjo político multilateral de participação de diferentes órgãos e autoridades públicas, a população negra tem sofrido ainda mais intensos ataques pelas mãos pesadas do atual governo- não apenas no esvaziamento das já frágeis políticas públicas, mas também - no ataque à sua memória e tradição.

À frente da condução da Fundação Cultural Palmares, instituição pública com função de promover e valorizar a cultura negra, Sérgio Camargo nomeou o movimento negro como “escória maldita, negou a existência do racismo e desde sua posse definitiva, em março, não dialogou com movimentos negros.  

No início de junho deste ano os movimentos e coletivos negros ainda denunciaram a censura à biografias de lideranças históricas no site da Fundação Palmares. Uma das páginas que continha um mosaico de vida de homens e mulheres negras foi retirado do ar, entre eles o perfil de Zumbi dos Palmares, um dos mais importantes líderes negros da história do país e a quem Sérgio já nomeou como “filho da puta que escravizava pretos”.

Ainda que na sequência o Ministério Público Federal (MPF) tenha a abertura de inquérito para investigar eventual crime de racismo praticado pelo presidente da Fundação Palmares, as práticas racistas e o projeto de revisionismo histórico em curso pouco ou nada sofre punições pelo Estado brasileiro.

No ano passado, em maio, o presidente Jair Bolsonaro declarou em entrevista à Rede TV que “essa coisa do racismo, no Brasil, é coisa rara”. Pouco depois, em junho, o Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF-2) arquivou a denúncia apresentada pela Procuradora-Geral da República em que o presidente respondia pelas declarações racistas.

Durante palestra realizada no Clube Hebraica o presidenciável declarou que eu fui num quilombola em Eldorado Paulista. O afrodescendente mais leve lá, pesava sete arrobas. Não fazem nada! Eu acho que nem pra procriadores servem mais (...). Mais de um bilhão de reais por ano gastado com eles”. Fiel à promessas de campanha em “não vai ter um centímetro demarcado para reserva indígena ou para quilombola”, o governo tem obstruído a política de titulação de territórios quilombolas tanto no esvaziamento do orçamento para obtenção de terras, quanto na ocupação de assentos estratégicos a política por oposicionistas à titulação, como a ruralista Tereza Cristina (PSL) no comando do Ministério da Agricultura, Pesca e Abastecimento (Mapa), pasta sob a qual o  Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) está alojado.

“O país não tem medidas institucionais racistas, não tem lugar que diga que não pode negro. Ao contrário, tem leis que pregam igualdade, mas na hora de organizar a política e coibir as situações racistas isso não ocorre”, declara a coordenadora da organização Criola, Lúcia Xavier.

Ela destaca ainda que a ausência de normas explicitamente racistas são o esteio por onde perpassam os argumentos da sociedade racista de que o Estado não é autor de práticas de discriminação. “O racismo não é institucionalizado por uma lei ou programa, mas está presente em todos os processos de acesso e execução das políticas pública. Quando você vai olhar como a população negra acessa a saúde e educação públicas, por exemplo, você vê que há uma deliberada ação racista de dificuldade de acesso, de diferença de tratamento, mesmo que não esteja nada escrito. Não se constrói política pensando nisso, mas os efeitos são esses. Produzem uma falsa ideia de que o enfrentamento ao racismo não é responsabilidade do Estado até quando você é discriminado”, declara.  

Para o integrante da coordenação nacional da Conaq, Ronaldo dos Santos, é fundamental que a sociedade descortine a visão desumanizadora da população negra que o Estado busca implementar ao negar o racismo e desnaturalize este estado das coisas. “A sociedade é um projeto. Nosso erro é pensar que a sociedade é fruto do acaso, construído, implementado e revisado sistematicamente. Ou a gente participa disso ou seremos parte da construção de outro modelo de sociedade, esse sim de enfrentamento à desigualdade e o racismo”, sublinha.

Organizações apontam que os impactos do racismo incidem com mais violência sobre as mulheres negras. Foto: Mídia Ninja

Informe à ONU

Com o aumento de manifestações racistas de autoridades públicas e de relativização da escravidão, e diante da obstrução de canais internos para diálogo entre governo e sociedade, um conjunto de organizações enviou um informe à Relatora Especial sobre formas contemporâneas de Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Religiosa, Tendayi Achiume. A iniciativa busca subsidiar a elaboração do novo relatório para o tema.

No documento, o coletivo destaca que “na atualidade, o contexto de desigualdade estrutural das relações raciais no Brasil é impactado pelo enfraquecimento das políticas públicas de proteção à população negra aliado ao incremento dos discursos públicos que contestam a garantia de direitos a essa população, desqualificando suas lutas, afirmação de identidades e posicionalidades”, destaca um trecho.

Com relatos de diversos episódios de manifestações racistas por autoridades públicas desde as eleições de 2018, o documento ainda destaca os efeitos de validação de tais práticas pela esfera pública. “Avaliamos que seria importante que a gente pudesse apresentar informações do que tem acontecido no Brasil desde o período eleitoral até agora. Achamos importante incluir os efeito que essas falas autorizativas cria no imaginário popular da sociedade como todo. O documento ainda aborda distintas situações que a gente percebe uma réplica destes discursos oficiais por pessoas comuns”, aponta a integrante da Anistia Internacional, Alexandra Montgomery.

 




Eixos: Política e cultura dos direitos humanos