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MPF recomenda medidas em favor das comunidades apanhadoras de flores sempre-vivas do Parque da Serra do Cabral


A medida é resultado de um inquérito articulado pela Codecex e Terra de Direitos junto ao órgão do sistema de Justiça.

A panha de flores, prática tradicional centenária, tem sido criminalizada. Algumas comunidades tem tido acesso obstruído para a panha no Parque Estadual da Serra do Cabral. Foto: Valda Nogueira

O Ministério Público Federal (MPF) recomendou, em novembro, a adoção de medidas de reconhecimento das comunidades tradicionais afetadas pela criação do Parque Estadual da Serra do Cabral, em Minas Gerais, especialmente as que exercem atividade de apanhadoras de flores sempre-vivas. A medida é resultado de um inquérito articulado pela Codecex - Comissão em Defesa dos Direitos das Comunidades Extrativistas e Terra de Direitos junto ao órgão do sistema de Justiça. A recomendação, além de reconhecer a existência das comunidades na região antes da criação do Parque, solicita a anulação dos autos de infração e multas que tenham sido emitidas com o intuito de coibir as práticas extrativistas das comunidades, principalmente a coleta de flores. A recomendação é assinada pelos procuradores da República Helder Magno da Silva e Edmundo Antônio Dias Júnior.

O Parque Estadual da Serra do Cabral foi estabelecido em 2005 com mais de 22 mil hectares nos municípios de Buenópolis e Joaquim Felício, em Minas Gerais. No inquérito instaurado pelo MPF foi enfatizado que a Unidade de Conservação foi criada sobreposta ao território das comunidades extrativistas apanhadoras de flores da região. Além disso, o Parque ignorou a existência das comunidades ao criar seu Plano de Manejo – que delimita os usos para a conservação da biodiversidade local. Um destaque é que o Parque foi criado após a inserção da Convenção 169 da OIT no ordenamento jurídico brasileiro e da criação do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), em 2000. Ainda assim, para a criação do Parque não foi realizada a consulta previa, livre e informada com as comunidades residentes na área, como determina a legislação.  

O acesso ao parque foi restringido a todos desde 2014, quando os sítios arqueológicos identificados na localidade ainda precisavam ser estudados. No entanto, desde a criação do Parque, em 2005, as comunidades vivenciam dificuldades para realizar a panha de flores. O plano de gestão foi publicado em junho de 2015 sem qualquer menção à existência de povos e comunidades tradicionais no território. Segundo a representante da Codecex, Tatitinha Alves, não houve qualquer diálogo ou consulta com as comunidades, como estabelece o direito à consulta prévia, livre e informada, previsto na Convenção n.º 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que destaca a obrigação do Estado de consultar os povos interessados, mediante procedimentos apropriados e, em particular, de suas instituições representativas, sempre que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente.  

“A Codecex tem acompanhado a luta das comunidades há mais de 10 anos e percebido o grande impacto da não consulta livre, prévia e informada no desenvolvimento de empreendimentos que afetam os territórios tradicionais. A criação de parques tem gerado grande conflitos. Além de não consulta, os parques são criados de cima para baixo, sem o reconhecimento de povos tradicionais que estão lá há mais de século, manejando o território e fazendo a conservação da biodiversidade. Além de desconsiderar nosso papel na preservação e nossa existência, ainda violam nossos direitos expropriando nossos territórios e nos criminalizando. Na Serra do Cabral não é diferente”, aponta Tatinha. 

Na prática, a criação do Parque sem a consulta aos povos impactos já deveria impedir a delimitação da área para preservação sem uso humano dos recursos naturais da região. Na recomendação, o MPF ressaltou que além de violar a Convenção 169 – ratificada pelo Brasil desde 2002 –, a proibição da panha de flores, descumpre o Decreto n.º 6.040/2007, que instituiu a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades.  

Na avaliação da assessora jurídica da Terra de Direitos, Marina Antunes, o impedimento do exercício da prática tradicional pelas comunidades acarreta numa série de violações de direitos dos povos e comunidades tradicionais e é papel do Estado brasileiro garantir a existência e manutenção dos modos de vidas das apanhadoras de flores, inclusive para a preservação da biodiversidade local.  
"A recomendação é importante para abrir um diálogo com os órgãos, principalmente a Polícia Militar do Meio Ambiente e o IEF e para constatar o descumprimento da Convenção 169 da OIT e do Decreto 6.040/2007 pelo Estado. Mas as Comunidades têm muitos desafios pela frente, e a prioridade é garantir o direito da panha de flores sem a criminalização da atividade como vêm acontecendo e a regularização territorial para as comunidades tradicionais e quilombolas da região poderem viver livremente sobre seus territórios", destaca a advogada. 

“É um avanço muito grande a gente ter recomendação do Ministério Público Federal pensando em proteção do modo de vida tradicional das apanhadoras de flores da Serra do Cabral. É uma conquista saber que este povo, que estava na invisibilizado, hoje é reconhecido mundialmente, pelo estado de minas e agora tem essa recomendação. Agora é pensar nos avanços que isso vai trazer daqui para a frente, é garantir que a recomendação saia do papel. A grande dificuldade e desafio é esse”, complementa Tatinha. 

Unidades de conservação e conflitos  
A criação de Unidades de Conservação na região também impacta a vida de outras comunidades que dependem dos recursos naturais para manutenção dos modos de vida e sobrevivência na região. Como é o caso das comunidades impactadas pela sobreposição do Parque Nacional das Sempre Vivas, instituído em 2002, sobreposto ao território de diversas comunidades tradicionais apanhadoras de flores e quilombolas.  

Assim como no Parque Estadual, os povos e comunidades que vivem no Parque Nacional sofrem os impactos da falta de acesso aos seus territórios. Ali vivem diversas famílias que dependem dos campos de flores para sua sobrevivência e manutenção dos modos de vida e cultura. 

As práticas tradicionais das apanhadoras são reconhecidas nacionalmente e internacionalmente por serem exercidas em harmonia com a preservação da sociobiodiversidade local. Inclusive são consideradas agentes de manutenção e preservação do meio ambiente. Em 2020, as apanhadoras de flores receberam o título de 1º Patrimônio Agrícola Mundial do Brasil pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), denominado Sistemas Importantes do Patrimônio Agrícola Mundial (SIPAM). Este certificado visa reconhecer os patrimônios agrícolas desenvolvidos por povos e comunidades tradicionais em diversas partes do mundo e exigem entre os órgãos do poder público a adoção de medidas para a proteção das comunidades e seus modos de vida.  

Em 2023 as comunidades também foram reconhecidas e certificadas como Patrimônio Imaterial do Estado de Minas Gerais, pelo Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico, Iepha-MG. 



Ações: Conflitos Fundiários

Eixos: Biodiversidade e soberania alimentar