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Vara Agrária de Santarém reconhece posse e garante acesso à água para famílias quilombolas


Decisão impede que empresário que está dentro do território quilombola volte a desligar sistema de abastecimento da comunidade

Tiningu  é a quarta comunidade quilombola a ser reconhecida pelo Incra em Santarém. / Foto: Pedro Martins

Uma decisão da Vara Agrária de Santarém (PA), publicada neste dia 18 de outubro, contribuirá para diminuir um conflito que já dura anos e que prejudica a vida de quilombolas  da cidade. O juiz Manuel Carlos de Jesus Maria, da Vara Agrária e Juizado Especial Criminal do Meio Ambiente, reconheceu a manutenção de posse das famílias do Quilombo Tiningu e proibiu que o empresário Silvio Tadeus dos Santos volte a cortar o sistema de água que abastece a comunidade.

A sentença é resultado de uma ação de manutenção de posse movida pela Associação de Remanescentes de Quilombo do Tiningu (Arqtiningu), com assessoria jurídica da Terra de Direitos, para reivindicar o reconhecimento do direito ao território tradicional e garantir o acesso à água. Acesse aqui a sentença.

Isso porque há dois anos as famílias enfrentam um conflito com o empresário Silvio Tadeu, que se afirma proprietário de uma área dentro do quilombo e tem impedido os quilombolas de acessaram um dos recursos mais básicos para manutenção da vida: a água. Desde o início de 2018, o empresário que alega ter adquirido parte do que hoje forma o território tradicional em 1996 vem desligando um dos microssistemas de água que abastece a comunidade.

Com isso, o abastecimento de água para a comunidade de mais de 90 famílias ficou prejudicado. Um Centro Comunitário de Saúde que atende indígenas, pescadoras e pescadores do planalto santareno também é afetado pelos cortes de água.

A sentença da Vara Agrária de Santarém, no entanto, determina que novos cortes de água não sejam realizados. O presidente da Associação de Remanescentes de Quilombos de Tiningu,  Raimundo Benedito da Silva Mota comemora a decisão. “Agora a gente vai tornar a reivindicar o funcionamento do microssistema, limpar e jogar água para as famílias que estão necessitadas", diz ele.

O sistema que contribui no abastecimento da comunidade foi construído há mais de 30 anos pelos próprios quilombolas – antes mesmo da chegada de Silvio Tadeu ao local. A água captada em um igarapé é transportada em canos que passaram na área onde está localizado o terreno do empresário, e se conectam a outro microssistema de água que distribuía a água para as casas da comunidade. Com o desligamento de um deles, o abastecimento ficava comprometido. “Como são muitas famílias, ficava faltando água para várias casas. Com essa decisão todo mundo vai ficar feliz”, conta Mota.

Na decisão, o juiz Manuel Carlos destaca a determinação do Código de Águas, que “assegura o uso gratuito de qualquer corrente ou nascente de águas, para as primeiras necessidades da vida”.

Advogado popular da Terra de Direitos que acompanha o caso, Ciro Brito lembra que o direito à água é um bem comum e direito básico, previsto no Artigo 225 da Constituição Federal de 1988, que trata do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Ele destaca a decisão. “Esse é um importantíssimo avanço na cultura judiciária local, uma vez que além das questões fundiárias e agrárias passa-se a comportar também a questão hídrica”, diz. “Essa questão não costuma ganhar repercussão pelos operadores do direito e pelos membros do Judiciário, mesmo sendo objeto de grandes disputas e violações de direitos dos povos indígenas e povos e comunidades tradicionais na Amazônia”, completa. Além da previsão constitucional o direito á água é assegurado no Código das Águas, inscrito no Decreto 24.643/1934. Como necessidade vital prevista nas normativas, o juiz reconheceu que a relação entre o igarapé e violação do direito ao uso gratuito da água. 

Para Raimundo Benedito, esse é um importante passo para garantir também outros direitos. “Com essa decisão, e esperamos que coisas melhor venham, que é a titulação de todo o território”, indica.

Resistência
Localizado na Gleba Ituqui – uma área da União – o Tiningu é uma das 12 comunidades quilombolas de Santarém e a quarta a ser reconhecida pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Apesar de ter desde 2015 o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação – um dos requisitos para o avanço do processo de titulação – apenas em 2018 o Incra publicou a portaria de reconhecimento e demarcação de 3.857 hectares da terra.

Na decisão, o juiz reconheceu o caráter coletivo do território quilombola, e destacou que, além de Silvio Tadeu não ter apresentado provas de ter propriedade da área, o conceito de direito de propriedade não é absoluto, pois observa também a “dimensão de ordem social, econômica e ambiental”. “Hoje se pode afirmar que com a constitucionalização do direito de propriedade, este deve ser visto e aplicado como instrumento de transformação social, de forma a atender aos princípios e garantias fundamentais inerentes a pessoa humana, visando melhoria nas condições de vida e bem estar”, indica na sentença. A expectativa da comunidade com a decisão é que os conflitos na região se acalmem. Além de desligar e cortar o microssistema de água, Silvio Tadeu e o caseiro dele também teriam borrifado agrotóxico na plantação de um quilombola do Tiningu, destruindo toda sua plantação. Eles ainda teriam cercado a área que o quilombo usa para atividades de agricultura, comprometendo inclusive a produção de uma casa de farinha do local.

Em decorrência disso, várias denúncias foram realizadas aos órgãos públicos, tais como Incra e os Ministérios Públicos Estadual e Federal. Em liminar, reiterada por duas vezes, a Justiça proibiu que o empresário desligasse o microssistema de água da comunidade e realizasse desmatamento ambiental na área.

Essa é a segunda sentença judicial que os quilombolas comemoram em duas semanas. No início de outubro, a Justiça Federal de Santarém manteve a suspensão do licenciamento ambiental do terminal portuário da Empresa Brasileira de Portos de Santarém, previsto para ser instalado no Lago Maicá. Além do Tiningu, a obra impactará outras 11 comunidades quilombolas de Santarém. Saiba mais



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Ações: Quilombolas, Conflitos Fundiários

Eixos: Terra, território e justiça espacial