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Projeto de Lei de Terras no Pará favorece a “Grilagem Verde”, apontam organizações


Proposta aprovada no atropelo pela Assembleia Legislativa amplia, sob discurso de desburocratização, as ameaças de mercantilização da natureza

 

A nova lei de terras para o estado do Pará, aprovada no último dia 11 pela Assembleia Legislativa do estado (Alepa), que trata da regularização fundiária de ocupações rurais e não rurais em terras públicas, é objeto crescente de oposição por diversos setores.

A matéria, inscrita no Projeto de Lei 129/2019, aguarda sanção do governador Helder Barbalho (MDB) e acumula críticas de organizações e movimentos sociais, bem como dos Ministérios Públicos do Estado do Pará e Federal e da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), órgão vinculado ao MPF.

Pesam não apenas as violações no processo legislativo, em amplo descompasso com complexidade da medida – apenas 33 dias de tramitação, com manobras regimentais e sem o devido debate público – e as inconstitucionalidades da lei, como também a reafirmação, pela nova normativa, da estreita conexão entre os ordenamentos ambiental estadual e os voltados à regularização fundiária.

O estado, que possui cerca de 31% da totalidade das suas terras sem definição fundiária ou sem informação sobre situação fundiária, segundo estimativas do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), coloca – com a nova lei – uma vasta extensão territorial de terras tradicionalmente ocupadas por comunidades tradicionais, agroextrativistas, indígenas, etc – em um contexto de vulnerabilidade à exploração pelos interesses de mercado.

Integrante do Grupo Carta de Belém, a pesquisadora do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (Naea) da Universidade Federal do Pará (UFPA), Marcela Vecchione Gonçalves, destaca que esta conexão vem de longa data nos regramentos instituídos pelo estado.

Desde a implementação pioneira do Cadastro Ambiental Rural (CAR) no Pará, quatro anos antes da implementação federal, até mecanismos anteriores, como o zoneamento ecológico-econômico (ZEE) - instrumento incorporado na Política Nacional do Meio Ambiente regulamentado pelo decreto nº 4.297/2002 – o estado possui larga experiência no arranjo entre as leis que regulam a exploração da natureza e a ocupação do solo, com viés de obtenção do lucro como premissa principal.

“As próprias estruturas iniciais de implementação do CAR, e como foi incorporado, é como se a gente falasse de um ordenamento ambiental que garante um zoneamento econômico que legitima a expansão do agronegócio, com legalidade ambiental”, destaca ela.

As normativas, além de orientar a exploração e uso do solo, tem impacto direto nas comunidades tradicionais que residem nas áreas exploradas e na forma como reproduzem seus modos de vida. “Isso [a aplicação das normativas estaduais] tem rebates na concentração da terra e usos, impactos profundos em arranjos coletivos de terra, como assentamentos da reforma agrária, povos indígenas, comunidades quilombolas e agroextrativistas”, reforça Marcela.

O assessor jurídico da Terra de Direitos, Pedro Martins, analisa o espectro da adoção de uma legislação de regularização fundiária para a Amazônia conectada com a política de meio ambiente.

Ele destaca que as normativas abrem caminhos para que os estados da Amazônia Legal, área que compreende nove estados nove estados do Brasil pertencentes à Bacia Amazônica, pudessem captar recursos externos a serem incorporados aos orçamentos estaduais. “Os estados da Amazônia Legal são pioneiros nas estratégias de regularização ambiental tendo em vista as possibilidades de captação de recursos de cooperação intencional e de outras fontes de acesso ao financiamento, de acesso aos mercados e bancos, que coloquem recursos na máquina estatal de cada estado. Esse modelo veio se desdobrando e agora aparece muito nítido no texto do PL 129/2019”, relata.

A implementação dessas leis e serviços possibilita, por exemplo, que práticas relacionadas à política ambiental tenham também vinculação com a facilitação da oferta das terras para o mercado. “A lei define serviços ecossistêmicos como atividade agrícola, ou seja, a manutenção florestal pode indicar posse e cumprimento de sua função social, o que seria um prato cheio para a regularização da grilagem, uma grilagem verde”, explica o assessor jurídico.

Pedro ainda aponta que o registro de terras públicas por particulares no Cadastro Ambiental Rural que contenha considerada vegetação nativa preservada - em razão de especulação da área – “poderia servir para fundamentar um processo de regularização fundiária por suposto serviço ecossistêmico, é nesse momento que os mecanismos de grilagem são reformulados com uma tinta verde”, sublinha ele.

De acordo com o assessor jurídico, os estados da Amazônia Legal, em especial o Mato Grosso e o Pará, apostam fortemente no ordenamento territorial e ambiental pela possibilidade que os mecanismos pretensamente “verdes” possam regularizar o agronegócio. “O investimento que serviria para a compra de equipamentos tecnológicos para fiscalização ambiental, por exemplo, também estava associado à construção de sistema de regularização fundiária, o reconhecimento das posses, e sempre dificultando o acesso a esses sistemas pelos povos e comunidades tradicionais. Sempre se privilegiou a regularização do setor produtivo, mas no sentido de que garantisse um nicho de mercado”, complementa.

Lei de Terras
Além da regularização de uma “grilagem verde”, a nova lei que pode ser sancionada a qualquer momento também atua no afrouxamento de regras fundiárias para exploração da natureza.

Em nota técnica produzida pelo Imazon, o instituto de pesquisa aponta que a nova lei, se implementada, permite que áreas que possuam grandes proporções de floresta possam ser privatizadas, possibilita a regularização fundiária de áreas desmatadas ilegalmente após 2008 e fragiliza a responsabilização de danos ambientais nas terras públicas ocupadas ilegalmente. “Tais mudanças validam um ciclo histórico na Amazônia de afrouxamento das regras fundiárias para favorecimento de interesses privados, mesmo diante dos prejuízos ambientais e financeiros à sociedade”, diz um trecho da nota técnica.

A integrante do Grupo Carta de Belém ainda destaca três grandes preocupações que a nova Lei de terras institui. A primeira diz respeito à definição do CAR como instrumento de regularização fundiária – o que dificulta a titulação de terras para comunidades tradicionais pela dualidade de acesso ao instrumento. “O Cadastro não é um instrumento e não deveria ser um instrumento de regularização fundiária”, diz a pesquisadora Marcela.

Outra preocupação trata da criação da categoria “terra pretendida” – enquadramento que abre brechas para regularização de áreas ilegais. E por fim, da terceira questão destacada, é a apresentação de um plano de aproveitamento econômico e extrativo pelas populações que estariam em áreas suscetíveis à ocupação. Além da dificuldade dos povos tradicionais provarem, nos termos exigidos pela norma, as atividades econômicas que desenvolvem, a nova lei abre brechas para o remanejamento de povos tradicionais caso a terra seja de interesse de terceiros. “Se o agronegócio apresenta um plano mirabolante de geração de lucros para terra pretendida, isso já pode funcionar como documento justificativa para que aquela terra seja destinada”, destaca. 

Em recente manifestação, diversas organizações direcionaram ao governador o pedido de veto da Lei.

 

 



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