No Médio Tapajós, portos avançam sobre os direitos das comunidades
Franciele Petry Schramm / Artes: Lucas de Souza
Continuidade das obras e das violações de direitos está nas mãos da Justiça Federal, que deve julgar ações de suspensão dos empreendimentos
Ribeirinhas, indígenas, quilombolas e pescadores que vivem às margens do Rio Tapajós no distrito de Miritituba, em Itaituba, Oeste do Pará, veem com preocupação a exploração econômica e ambiental do lugar. As obras de pavimentação da BR 163 e a construção de portos ao longo do rio já têm afetado a qualidade das águas e a produção de peixes da região. Irleusa Souza Robertino, coordenadora da Associação Indígena Apiaka Iakunda'Y de Pimental-Aiaip, conta que pescadores são impedidos de pescar nas áreas próximas do porto da empresa Bunge, por exemplo. “Sem falar que já foi detectado que os peixes da região estão podres por dentro. Até pedimos até um estudo da universidade para saber o motivo pelo qual esses peixes estão sendo afetados, se pode ser porque estão comendo aquele resto de material que vem da soja”, fala.
Além do terminal portuário da Bunge, Miritituba também abriga desde 2016 a estação de transbordo da empresa Cianport. Os empreendimentos fazem parte do Complexo Portuário de Tapajós, que prevê a construção de ao menos 23 portos ao longo do Rio Tapajós - 19 somente em Itaituba. Até o momento, três estações de transbordo de cargas do Complexo já estão em operação na cidade, e outras três estão em obras.
Os moradores da região já sentem os impactos dos dois empreendimentos – e que não são nada positivos. Há o relato do aumento no fluxo de veículos e até de habitantes do município, já que um diagnóstico participativo identificou que a população da cidade saltou de 97 mil, em 2010 – segundo censo do IBGE – para 140 mil pessoas no último ano.
Apesar da comprovação de mudanças e alteração na região, os moradores não foram ouvidos sobre essa possibilidade e nem os efeitos que podem ser somados a outros empreendimentos próximos foram levados em consideração pela Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Sustentabilidade (Semas).
É por essa razão que, em 2016, os Ministérios Públicos Federal (MPF) e estadual (MPE) moveram duas Ações Civis Públicas (ACP) para que fossem suspensas e anuladas as licenças ambientais emitidas para esses empreendimentos, uma vez que foi violado o direito à consulta prévia, livre e informada das comunidades e aldeias da região.
As ações pedem que sejam analisados os impactos que podem estar associados a outros empreendimentos previstos na área, e também requerem que os licenciamentos ambientais sejam transferidos da Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Sustentabilidade (Semas) para o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), já que os possíveis efeitos poderiam ir além do território do Pará.
Para que não houvesse suspensão das obras, as empresas responsáveis pelo complexo portuário se comprometeram, em maio de 2016, a promover um mapeamento de identificação de todas as comunidades que poderiam ser afetadas e que deveriam ser consultadas. Mais de um ano após o acordo, o mapeamento não foi realizado, nem as obras ou o funcionamento dos terminais foram paralisados.
O caso agora aguarda a análise da Justiça Federal de Itaituba.
Direito à Consulta
Localizada na cidade de Trairão (PA), a 160 km de Itaituba (PA), a comunidade ribeirinha Pimental também pode ser afetada pelo complexo portuário do Tapajós. Ela está na rota que dá acesso ao porto da Rio Tapajós Logística (RTL), previsto para ser construído ao lado da aldeia Sawre Juybu, do povo Munduruku, e da comunidade ribeirinha São Luiz do Tapajós.
Vice-presidente da Associação Comunitária dos Moradores e Pescadores de Pimental, Luvia Heydi conta que os moradores de áreas próximas estão cada vez mais preocupados com a possibilidade da obra.
“A gente já vai ser afetado diretamente, porque vão usar parte da estrada da comunidade para fazer corredor de soja, para as carretas passarem. Nós nos preocupamos com isso, porque vai causar mais violência, e atualmente a gente vive tranquilo”, conta.
Apesar das mudanças que podem comprometer a comunidade ribeirinha, os moradores e moradoras do local não foram consultados pela empresa Rio Tapajós Logística. “Vieram nos informar desse projeto só agora nesse mês de setembro, mas nem sequer perguntam se a gente vai querer ou não”.
A Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) garante o direito ao território de povos indígenas e tribais – o decreto federal nº 6.040 de 2007 inclui, nessa última categoria, comunidades quilombolas e tradicionais – e determina que esses grupos sejam consultados caso haja projetos e empreendimentos que poderiam afetar o modo tradicional de viver.
Mesmo as audiências públicas realizadas na região para a construção do complexo portuário não tiveram uma divulgação efetiva, nem foram suficientes para inteirar os moradores da situação. “Foram apresentados muitos questionamentos que não foram respondidos. Acredita-se que a mera realização da audiência cumpre o critério de participação social, mas isso não foi eficiente”, conta o advogado popular da Terra de Direitos, Pedro Martins.
Ele avalia que esses casos mostram como o direito à consulta prévia, livre e informada de indígenas e comunidades tracionais não foi respeitado. “A consulta deve seguir as regras estipuladas pela comunidade, povo ou grupo atingido”, explica. Segundo o advogado popular, as audiências públicas que estão previstas no processo de licenciamento ambiental não contemplam o que está previsto na Convenção 169.
Para exigir o cumprimento dos seus direitos, as comunidades ribeirinhas de Pimental e São Francisco elaboraram, de forma coletiva, um protocolo em que indicam as formas com que devem ser consultadas. O Protocolo de Consulta das comunidades já foi entregue para representantes do Ministério Público Federal.
Desenvolvimento x violações
A construção de um complexo portuário no Tajapós integra o ciclo do transporte de grãos produzidos no Brasil – especialmente a soja e o milho – para o mercado internacional. As obras devem ter a capacidade de escoar até 40 milhões de toneladas de grãos, principalmente vindos do Mato Grosso, segundo dados do Ministério da Agricultura.
Os portos previstos ao longo do Tapajós fazem parte do projeto conhecido como Arco Norte, proposto pelo governo brasileiro em parceria com setores do agronegócio, para a melhoria de infraestrutura voltada à exportação. Além de terminais portuários, o projeto também prevê a construção de ferrovias e rodovias entre a região Centro-Oeste e Norte.
Alguns empreendimentos previstos no Tapajós podem ser identificados no Plano Brasil de Infraestrutura Logística, lançado em 2012, e nas ações previstas no Fundo de Cooperação para Expansão e Capacidade Produtiva Brasil-China, anunciado em maio deste ano.
Além da previsão de pavimentação da BR 163 (que liga Santarém-PA a Cuiabá-MT), está prevista a licitação para a construção do Ferrogão, que vai ligar por meio de estradas de ferro quase mil quilômetros entre o Mato Grosso e Pará. A obra deve atravessar Unidades de Conservação, Terras Indígenas e Projetos de Assentamento.
Mas o que promete alavancar a exportação de grãos e os ganhos financeiros para o agronegócio não é revertido para as comunidades das regiões. Articuladora do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase) na região, Jane Silva conta que a instituição tem analisado os possíveis benefícios ou prejuízos para os moradores dos locais próximos. Segundo ela, as pesquisas mostram que não haverá ganhos consideráveis frente aos impactos. “Ao constatar o número de empregos que esses portos vão gerar, percebe-se que não vai alterar a economia local”, aponta. O Relatório de Impacto Ambiental da Estação de Transbordo de Carga Itaituba, da empresa Cianport, por exemplo, prevê que devem ser gerados apenas 60 postos de trabalhos na operação do empreendimento.
Por outro lado, os impactos sobre a fauna e flora podem prejudicar quem mora na região – inclusive outros trabalhadores, como os pescadores. A empresa Rio Tapajós Logística, por exemplo, foi autorizada pela Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Sustentabilidade (Semas) a capturar, transportar e soltar animais das áreas próximas à estação de transbordo para a elaboração do Estudo de Impacto Ambiental.
Efeitos sinérgicos
Além dos portos, novas estradas e ferrovias, o potencial hidroviário do Tapajós também tem sido alvo da especulação para a construção de hidrelétricas na região. O Oeste do Pará está no Plano Nacional de Energia, e empreendimentos como o Complexo Itapacurá podem construir pequenas centrais hidrelétricas em Itaituba.
No Tapajós, também está prevista a construção da Usina Hidrelétrica (UHE) Jatobá - ainda sem estudos concluídos – que poderá barrar o Rio Tapajós.
Pedro Martins lembra que, no projeto de construção dos portos, devem ser considerados todos os impactos que podem resultar de um conjunto de obras previstas na região, e não apenas as alterações nas margens do Rio Tapajós, onde serão construídos os terminais de transporte.
“Os impactos causados por diversos vetores são cumulativos – ou seja, deve ser considerada a soma dos diferentes empreendimentos e seus respectivos impactos sobre aspectos sociais e ecossistêmicos da região”, explica. “O rio Itapacurá, por exemplo, pode sofrer com o barramento causado por uma pequena central hidrelétrica, ao mesmo tempo em que o grande movimento de caminhões na ponte construída nesse mesmo rio para acesso ao porto também acarretará efeitos prejudiciais a suas funções ecossistêmicas e culturais, através do barulho e dos restos de grãos que caem no local”. E completa: “Por isso, o licenciamento de qualquer obra deve considerar os possíveis impactos dos demais empreendimentos previstos”.
As mudanças poderão ser sentidas também em outras localidades. O Estudo de Impacto Ambiental da Estação de Transbordo de Cargas da empresa Cargill – que já está funcionando – já indicava, na época, que a obra afetaria, indiretamente, as divisas dos estados do Amazonas e Mato Grosso.
Por essa razão, o advogado popular insiste que o direito à consulta prévia, livre e informada só é respeitado quando são levados em consideração os diversos impactos inter-relacionados. “Seria pouco eficiente consultar uma só comunidade sobre uma única obra quando há uma série de empreendimentos previstos que podem aumentar os efeitos de cada projeto”, avalia.
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