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No Dia da Consciência Negra, a luta pela titulação de territórios quilombolas continua


Dona Vanir Rodrigues dos Santos nasceu, cresceu e viveu a vida toda na comunidade de remanescentes quilombolas Serra do Apon, em Castro. Aos 70 anos, a bisneta de escravos conta que gosta do sossego de onde vive. “É tudo perto, junto. Aí todo mundo se ajuda”.

A senhora explica que uma das dificuldades da comunidade é o fato de ainda não ser titulada. A Serra do Apon é uma das três comunidades quilombolas oficialmente reconhecidas de Castro, terceira cidade mais antiga do Paraná. Dona Vani conta que, assim como as outras duas – Limitão e Mamans – a Serra do Apon ainda não é titulada. “A gente tá esperando ajuda. O Incra quase nem aparece mais lá”. Ela sabe que, assim que for titulado o território, a vida no local deve ficar melhor e mais segura.

Também morador da Serra do Apon, seo Sebastião da Silva Trindade não abre mão da vida na comunidade.  Esteve fora muitos anos, trabalhando em Castro, na Fazenda das Bicas. Cuidava da plantação e dos animais para o dono que morava em outra cidade. Com admiração, ele conta dos detalhes da casa da fazenda. Tábuas encaixadas, sem serem pregadas, bambu e revestimento em barro dão forma as paredes. Grandes toras de madeira dão sustentação ao telhado. "Tudo feito por escravos", revela.

De volta a Serra do Apon, seo Sebastião sente-se contente em meio a terra onde nasceu e cresceu. Cuida do bichos e das plantas que agora são seus. “Meus filhos até queriam que viesse morar com eles na cidade, mas eu não quis”. O agricultor esteve em atividade promovida pela Associação das Comunidades Negras de Castro, no último dia 16. Orgulhoso, apontou para filha, sobrinho, prima e netos que estavam entre as cerca de 50 pessoas que participaram da VI Celebração da Consciência Negra.

Este é o sexto ano seguido em que as comunidades de remanescentes quilombolas de Castro promovem esse espaço de interação, debate e reflexão relacionado ao dia 20 de novembro. Dança, canto e arte ajudaram a celebrar a cultura do povo negro. Crianças, jovens, adultos e idosos participaram da atividade.

Para fortalecer a luta, o resgate dos direitos. Advogado Popular da Terra de Direitos, Fernando Prioste destacou no evento as "heranças" deixadas com o fim da escravidão. "O que negros e negras que antes eram escravos receberam do Estado brasileiro depois de 1888? O racismo!", aponta.

Ele explica que apenas 100 anos após o fim da escravidão, através da Constituição Federal de 1988, o Estado veio reconhecer o direito à terra dos quilombolas. O patrimônio material e imaterial desse povo tradicional está diretamente ligado a noção do território. "Mas, 27 anos depois do estabelecimento da Constituição, as comunidades quilombolas de Castro e do Paraná ainda não tem o direito à terra assegurado".

No país inteiro, apenas 28 territórios foram titulados. A Coordenação Nacional das Comunidades Quilombolas (Conaq) estima que existam cerca de 50 mil comunidades no país. "Reivindicar a titulação do território não é querer nada de ninguém. É exigir o que é de direito", defende o advogado.

Representante das comunidades quilombolas de Castro, Rozilda Cardoso descobriu ser bisneta de escravos apenas em 2007, através de estudos de árvore genealógica. Mesmo com o fim da escravidão, ela diz ter lembranças das histórias contadas pelos mais velhos, de muito trabalho e sofrimento pelos quilombolas que ali ficaram. Lembra de ver os tios, humildes, carregando pesados sacos nas costas, e das longas horas de trabalho.

Saindo de casa aos 13 anos para trabalhar de empregada doméstica no centro da cidade, a mulher conta que sempre se viu discriminada. Através dos estudos, viu uma possibilidade de mudança. “Sabendo que meus tios viveram com tantas dificuldades e com a falta de acesso à lei, comecei a correr atrás dos nossos direitos”.

Para ela, momentos como o proporcionado pela atividade – aberta a todos e todas – são fundamentais. “Só depende de nós para que essa corrente siga em busca da igualdade social e racial”.

Planejamento de titulação

Celebrando e dando continuidade as lutas de Dandara, Acotirene e Zumbi dos Palmares – líderes da resistência negra pelo fim da escravidão – uma petição protocolada junto ao Instituto de Colonização e Reforma Agrária (Incra) do Paraná, nesta sexta-feira (20), pede que o órgão realize um planejamento de titulação de todas as comunidades quilombolas do estado.  O documento, protocolado pela Terra de Direitos, sugere que o planejamento seja feito junto com as comunidades e que diagnostique e busque enfrentar todos os entraves nos processos de titulação dos territórios.

O Paraná possui 37 comunidades quilombolas reconhecidas e certificadas pela Fundação Cultural Palmares. No entanto, nenhuma delas teve, até o momento, seu território titulado, como determina o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) da Constituição Federal de 1988. Também não há qualquer expectativa para que o Incra conclua todos os processos de titulação dos territórios quilombolas em um prazo razoável.

Fernando Prioste explica que esse panorama de dificuldades é fruto da pressão exercida por grupos econômicos ligados ao agronegócio. Segundo ele, esses seriam os mesmos que impulsionam pela aprovação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215 e que ajuizaram a Ação Direta de Inconstitucionalidade 3239 no Supremo Tribunal Federal (STF).

O advogado reconhece que são muitos os desafios enfrentados pelo Incra – órgão incumbido das titulações dos territórios quilombola. O instituto depende de alocação de recursos financeiros para desapropriações, contratação de servidores e estruturação do órgão. “Esses desafios precisam ser diagnosticados e enfrentados, sob pena de torna-se inefetiva a constituição que confere aos quilombolas o direito aos seus territórios”, avalia. Prioste aponta que a realização de um planejamento institucional que enfrente todos os obstáculos postos e busque construir a possibilidade de titular todos os territórios quilombolas existentes no estado do Paraná em um prazo razoável é uma imposição da própria lei institucional.

“O Incra atualmente não tem estrutura para enfrentar a atual situação que impede a titulação dos territórios quilombolas, apesar dos grandes esforços de seus servidores”. Para ele, seria necessário que o próprio órgão, em diálogo com as comunidades quilombolas, elaborasse um plano estratégico para identificar todos os obstáculos que encontra para a titulação dos territórios quilombolas e, assim, efetivamente propor ações reais que alterem o atual panorama de morosidade nos processos de titulação.

Entendemos que o Incra é um órgão comprometido com as lutas das comunidades quilombolas por seus direitos e que, assim, estará compromissado em realizar tal planejamento de forma participativa, viabilizando a construção futura de esperanças para as comunidades quilombolas, de modo que possam ver e sentir a possibilidade de terem seus territórios tradicionais titulados em um prazo razoável.

A pressão contra a titulação dos territórios quilombolas precisa ser enfrentada por toda a sociedade, por todos e todas que estejam comprometidos com a superação do racismo em nossa sociedade. Nesse panorama de luta as comunidades quilombolas têm protagonismo, pois são os sujeitos históricos que atuaram de modo a conquistar esse direito à terra na Constituição, passados cem anos da abolição formal e inconclusa da escravidão. Além do protagonismo dos sujeitos, o Estado também tem um papel central no enfrentamento ao racismo que impede o avanço nas titulações dos territórios quilombolas.

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Ações: Quilombolas

Eixos: Terra, território e justiça espacial