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Gazeta do Povo | TRABALHO ESCRAVO “Todos somos responsáveis”


Leonardo SakamotoLeonardo Sakamoto, jornalista e integrante da Comissão Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo

Fonte: Gazeta do Povo, por Yuri Al'Hanati 

“É tudo menos uma questão de maldade ou bondade”, diz Leonardo Sakamoto, quando perguntado sobre as causas do trabalho escravo. Para o jornalista e coordenador da ONG que divulga denúncias sobre o tema Repórter Brasil, a prática é fruto de um cálculo econômico e está ligada a um sistema de competitividade e pressão por preços baixos. Nesta entrevista, Sakamoto fala, entre outras questões, da necessidade de aprovar a PEC do Trabalho Escravo, empacada no Senado desde 2012.

Quais as condições que fazem surgir o trabalho escravo?
O trabalho escravo não é resquício de formas antigas de exploração que vão desaparecer quando a modernidade chegar a todos os lugares. Ele é um instrumento utilizado sistematicamente para reduzir custos. No afã de melhorar a lucratividade ou aumentar a competitividade do seu negócio, vão se reduzindo custos dos direitos trabalhistas, até que você cruza uma linha que é a linha de dignidade e liberdade das pessoas. É claro que um fazendeiro ou um empresário não busca ter escravos. Mas eles vão cortando direitos e quando veem, já estão incorrendo nesse crime. E existem condições que tornam isso possível. Por exemplo, o sentimento de impunidade, que é ainda muito grande, e a pobreza.

Em que sentido as leis avançaram no tema?

O artigo 149 do Código Penal é da década de 1940 e teve sua atualização em 2003. Ele é claro na definição de trabalho escravo, e da punição. Agora a gente tem uma série de medidas a aprovar. A mais importante delas a PEC do Trabalho Escravo, que prevê o confisco, sem indenização, de propriedades rurais e urbanas que praticam esse tipo de crime. O trabalho escravo é um cálculo econômico, então transformar o lucro em prejuízo é a melhor forma de combater esse crime.

Existe punição efetiva para a prática hoje no Brasil?

Você tem umas 40 ou 50 condenações por trabalho escravo, mas boa parte recorre em liberdade. É muito difícil um caso transitado em julgado que tenha como decisão final a cadeia para o réu. Mas eu sempre acho mais importante penalizar o caráter econômico. Não estou falando que a cadeia não é importante, até porque existem casos de trabalho análogo ao escravo com abuso de violência em que não há discussão, mas para coibir a prática são necessários elementos que causem prejuízo ao produtor.

Uma liderança ruralista me deu um depoimento interessante sobre a PEC: “pegue o praticante de trabalho escravo, jogue na cadeia e jogue a chave fora, mas não mexa na propriedade da família dele”. Isso é categórico do que a gente tá falando. Coloca-se em primeiro lugar a propriedade privada, e só muito depois, a dignidade da pessoa, inclusive do próprio criminoso, que vai ser esquecido na cadeia. O medo dos ruralistas é esse. Eles não concordam com o trabalho escravo, mas acham que a propriedade privada é intocável. Infelizmente, no Brasil, o direito à propriedade se sobrepõe a todos os outros.

Quais são as principais resistências à aprovação da PEC do Trabalho Escravo hoje?

A PEC está sendo debatida desde 2012. Todo mundo achou que ia ser relativamente simples aprová-la, até porque a sociedade brasileira entende que não há discussão na questão do trabalho escravo, mas a bancada ruralista, percebendo que a aprovação da PEC é só uma questão de tempo, mudou de tática e passou a questionar o conceito de trabalho escravo. A depender deles, trabalho escravo se resumiria apenas a pessoas que tem bolas com correntes presas aos pés, morando em senzalas tradicionais. Mas o trabalho análogo ao escravo tem características diferentes. E o artigo 149 é bonito porque o bem tutelado ali é a dignidade, que é um conceito mais amplo, e que contém a liberdade em seu conjunto. Os ruralistas querem deixar na definição só a questão da liberdade, e tirar a da dignidade. Mas a gente tá no século 21, não temos de retroceder em conquista de direitos e falar “tudo bem, o cara pode trabalhar como um animal, mas se ele puder ir embora quando ele quiser, não é trabalho escravo”. Por favor, né?

Como está hoje a execução do plano nacional para a erradicação do trabalho escravo?

O primeiro plano foi lançado em 2003 e o segundo em 2008. O atual plano tem 66 ações visando a erradicação do trabalho escravo. Tem ações sendo cumpridas, outras não sendo cumpridas, e outras sendo cumpridas parcialmente. A gente avançou muito na sensibilização dos autores públicos, da população, na punição trabalhista, até mesmo na questão criminal e na punição do envolvimento do setor produtivo. A gente tem hoje o pacto pela erradicação do trabalho escravo, que reúne mais de 400 empresas, que respondem por 30% do PIB brasileiro. Mas o processo para tirar esse pessoal dessa condição é lento. Falta reinserir as pessoas que foram vítimas, e mandar alguns praticantes para a cadeia.

O modelo econômico atual favorece o surgimento desse tipo de crime?

Não quero ficar culpando o sistema por isso, mas há uma responsabilidade global que é uma constante pressão pela redução de preços. Há uma pressão sobre o produtor rural para que ele produza cada vez mais por menos, e ele pode fazer concorrência desleal jogando o custo do trabalho para baixo. O varejo tem uma responsabilidade, portanto. Então a gente tem de ver o sistema econômico em que ele está inserido. Por que se faz roupa em Bangladesh? Por que os EUA fazem Iphone na China? Quando se força que o preço caia vertiginosamente, isso acaba se traduzindo na diminuição da qualidade de vida dos trabalhadores.

O consumidor é responsável também?

Nesse sistema, todos somos responsáveis. O consumidor é o menos responsável, ao contrário do que as pessoas pensam, porque ele não tem informação suficiente para ser cobrado. A gente desenvolveu, na Repórter Brasil um aplicativo para celular chamado Moda Livre, que avalia lojas varejistas de acordo com suas políticas de combate ao trabalho escravo. Essa informação é útil para envolver o consumidor no processo, porque ele precisa ser um fiel na balança também. É um sistema complexo, e necessita de muitas ações e conectadas. A PEC do trabalho escravo, por si só, não vai acabar com ele.
 

 

 

 
Balanço

Paraná tem 16 empresas na lista suja do MTE

No Paraná, 16 estabelecimentos estão na última lista suja do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), relação nacional atualizada no fim de dezembro de 2013. Todos eles são relacionados a atividades rurais, como fazendas e madeireiras, e receberam autuações sobre trabalho escravo. O procurador do trabalho Gláucio Araújo de Oliveira, do Ministério Público do Trabalho do Paraná (MPT-PR), acompanhou algumas autuações e diz que a maioria delas apresenta condições degradantes de alojamento e trabalho. “Alguns dormem em acampamentos feitos de lona, sem água e sem equipamentos de proteção”, conta. O procurador ressalta a importância da aprovação da PEC do trabalho escravo em seu texto original: “Eles querem tirar o conceito de dignidade da PEC. Se conseguirem, acaba o trabalho escravo no Brasil na mesma hora”, ironiza, e exemplifica: “Existem muitas denúncias em plantações de cana envolvendo jornada exaustiva, na qual o trabalhador pode até morrer de cansaço. Da última vez que eu conferi, eles pagavam ao cortador cerca de R$ 2,85 por cada tonelada de cana cortada. Ou seja, ele precisa cortar mais de dez toneladas por dia para ganhar R$ 900”. Em Curitiba, Oliveira aponta as denúncias envolvendo o ramo da construção civil. “Posso dizer com segurança que quase todas as construtoras têm denúncias de trabalho escravo. Mas eles alegam que o serviço é terceirizado e que os trabalhadores não são deles. Geralmente, trazem mão de obra do Nordeste e alojam vinte trabalhadores em uma casa com capacidade para cinco, quando não alojam na própria construção, em que quase sempre falta água”.
 

 



Ações: Empresas e Violações dos Direitos Humanos

Eixos: Terra, território e justiça espacial