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Cadastro ambiental rural de fazendeiro em território quilombola é cancelado no Pará


Essa é a primeira vez que a inscrição de um fazendeiro no CAR é cancelada por estar sobreposta a um território tradicional não titulado.

O pecuarista que registrou sua área no Cadastro Ambiental Rural (CAR) sobre o território da comunidade quilombola de Arapemã, em Santarém, no Oeste do Pará, teve cancelado o seu registro. Essa é a primeira vez, no Brasil, que a inscrição de um fazendeiro no CAR é cancelada por estar sobreposta a um território tradicional não titulado.

O cancelamento é uma determinação da Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Pará (Semas), a partir de pedidos realizados pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e da Terra de Direitos.

A fazenda foi inscrita no CAR com o tamanho de cerca de 860 hectares – aproximadamente 11 módulos fiscais. Desse total, 660 hectares inscritos estavam localizados em área de território quilombola localizado na ilha de Arapemã, uma das mais avançadas no processo de titulação do território, em Santarém.

Cerca de 80 famílias vivem no local, que tem uma expressiva produção de melancias e de pescado sempre com cuidado e proteção dos lagos que estão dentro da área. Os moradores da comunidade também são conhecidos pelos acordos internos de proteção do território e pela manutenção dos modos tradicionais de vida. Há anos lutam em defesa do território e ao meio ambiente, e sofrem com a ação de fazendeiros, criadores de gado e exploradores de argila.

Sobreposição e direito constitucional quilombola

Advogado popular da Terra de Direitos, Pedro Martins avalia que a decisão administrativa representa o reconhecimento do direito das comunidades quilombolas ao território tradicional – mesmo que ele ainda não tenha sido titulado. E pontua: “A legislação ambiental, e especialmente o CAR, deve reconhecer e respeitar a expressão do Território Quilombola, já que as sobreposições dos registros no sistema podem trazer consequências danosas à comunidade.”.

A inscrição do CAR do pecuarista, que estava “ativa” no Sicar, em 2017, permitiria que o fazendeiro apresentasse requerimentos a órgãos ambientais como a Semas – a retirada da vegetação nativa da área, manejo ambiental e a criação, comercialização e transporte de animais são alguns dos exemplos dos requerimentos e autorizações possíveis.

Legislação ambiental

A inscrição no CAR só seria obrigatória a partir de 31 de dezembro de 2017, com possibilidade de prorrogação do prazo por mais um ano, como está previsto na lei do Código Florestal.  

No entanto, a interpretação equivocada da legislação ambiental e outras normativas estaduais fizeram com que órgãos estaduais de meio ambiente obrigassem a apresentação do CAR desde 2014. No Pará, por exemplo, um decreto estadual já exige a apresentação do cadastro para a emissão da Guia de Transporte Animal.

O advogado popular aponta que que a corrida para a realização do CAR é resultado de uma legislação ambiental que está em descompasso com direitos étnicos. “O modelo de regularização ambiental com base no CAR, que permite a autorização ou não de atividades rurais independente da verificação de documentos ou da situação, impulsiona processos de captura de terra. Isso pode gerar efeitos incompatíveis com o direito quilombola que está previsto na Constituição Federal e com o próprio Código Florestal”, avalia.

Direito Constitucional Quilombola

O Arapemã foi certificado como comunidade quilombola pela Fundação Cultural Palmares em 2004. Em 2008, o Incra publicou em Diário Oficial da União o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) da área. A partir desse mapa foi possível identificar as sobreposições com os imóveis inscritos no Sistema Nacional de Cadastro Ambiental Rural (Sicar).

Pedro Martins também lembra que os direitos das comunidades quilombolas não dependem da publicação do RTID para que sejam aplicados. “A interpretação do Direito Constitucional Quilombola nos indica que a auto-identificação da comunidade por si só produz efeitos jurídicos”, explica. O direito ao território quilombola também tem base na Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

Segundo ele, a presença não autorizada de terceiros no território quilombola representa violação. “Não se trata da discussão sobre ocupação nos termos da ‘posse civil’, mas sim da garantia da ‘posse tradicional’”. A categoria jurídica ‘território quilombola’ abrange a proteção aos modos de viver, criar e fazer das comunidades remanescentes de quilombo. Para o advogado, a decisão de cancelar o CAR de uma fazenda que estava sobreposta à área deve abrir precedente para outros casos no país.

Por estar localizada em área de várzea, a comunidade conquistou, em 2013, Termo de Autorização de Uso Sustentável (TAUS), emitido pela Secretaria de Patrimônio da União (SPU), como parte do processo de titulação do território.



Ações: Conflitos Fundiários, Quilombolas

Eixos: Terra, território e justiça espacial