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Apanhadoras/es de flores sempre-vivas celebram conquistas durante Festival Comunitário


Um percurso, muitas vezes feito em família, rumo ao alto da Serra montadas/os em cavalos, carregando comida e utensílios necessários para montar moradia debaixo das lapas (pequenas cavernas que servem de abrigo no período da panha), por até três meses. Essa é um pouco da rotina das/os apanhadoras/es de flores da porção meridional da Serra do Espinhaço (MG), na época propicia para a colheita de sempre-vivas, o período de seca. 

A colheita de sempre -vivas por estas comunidades é uma tradição ancestral e uma das principais fontes de renda das famílias. As flores são comercializadas, utilizadas para ornamentação e produção de artesanato. Dona Geralda Maria Soares da Silva, da Comunidade de Macacos, aprendeu a apanhar flores sempre-vivas com os pais. Até hoje, ela preserva a tradição de subir a serra e apanhar flores. Já Dona Maria dos Reis Bispo Amorim, da Comunidade de Salto da Chapada, ficou viúva cedo e criou os sete filhos com a renda tirada da panha de flores. Hoje, com mais de 70 anos, ela relembra a alegria que tinha ao subir a Serra para a colheita de sempre-vivas.

Dona Maria dos Reis da comunidade do Salto da Chapada “Nós dormíamos na Lapa, trabalhava panhando flor, todo mundo levantava cedo, acordava cantando. A gente se sentia tão feliz. Hoje, eu não aguento mais andar a pé, mas ainda tenho paixão por isso. Se você estava com um desgosto na cabeça, só de ver aquele botão, aquela flor, logo passava”, conta ela.

Esses e outros saberes, foram compartilhados durante a 2° edição do Festival Comunitário das apanhadoras/es de flores sempre-vivas, realizado nos dias 14 a 16 de junho na Comunidade Pé de Serra (MG), próxima ao município de Buenópolis (MG). O Festival, além de celebrar as conquistas das comunidades e promover atividades de formação e culturais, foi o momento de apresentar às sete comunidades da porção meridional da Serra do Espinhaço o resultado de uma construção coletiva delas: os protocolos comunitários de consulta prévia das comunidades apanhadoras de flores sempre-vivas.

Os documentos começaram a ser construídos em 2018 e contêm resoluções das comunidades tradicionais sobre a forma como elas querem ser consultadas quando qualquer empreendimento, ação ou pesquisa tenha interesse em acessar esses territórios tradicionais. Os protocolos foram construídos com o apoio da equipe da Comissão em Defesa dos Direitos das Comunidades Extrativistas (Codecex) e da Terra de Direitos.

 

Histórico de violações e violências

Nos debates realizados durante a programação do Festival, as comunidades evidenciaram que são frequentes as violências e violações, por parte de agentes externos, contra elas. Dentre essas violações destacaram a criação do Parque Nacional das Sempre Vivas, em 2002, sem consulta prévia pública. O Parque adentra o território dessas comunidade e, com isso, impede  que apanhadoras/es realizassem a panha dentro da área do Parque. Outras ameaças vêm de empresas de mineração e fazendeiros que invadem esses territórios tradicionais.

Fernanda Monteiro, pesquisadora da Universidade Federal do Vale do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM), começou a acompanhar essas violações em 2007, e percebendo a ocorrência de vários protestos nas ruas de Diamantina (MG), ela e outros pesquisadores, que estavam chegando à região, começaram a estudar o motivo desses protestos e quem ameaçava essas comunidades.

“Violência é uma palavra forte e constante nessa região, infelizmente. Nas partes baixas, eles têm uma frente forte dos latifúndios e fazendeiros, a entrada de grandes empresas de monocultivo de eucalipto e a presença de mineração. Já nas partes altas, um cercamento das comunidades, materializado pela criação dos Parques, na lógica de proteção integral da natureza, o que acaba sendo um arranjo político econômico de que os empreendimentos capitalistas podem compensar ambientalmente, em outras áreas, as mazelas causadas aqui. As comunidades costumam dizer que foram sendo empurradas embaixo e achatadas por cima, o que coloca em risco a reprodução sociocultural desses grupos que necessitam tanto das terras como da Serra para sobreviver”, pontua a pesquisadora da UFVJM. Segundo ela, as pesquisas desenvolvidas até o momento comprovam essa afirmação.

A não titulação dos territórios quilombolas das apanhadoras/es de flores sempre- vivas nessa região, é outro gerador e violência para essas comunidades. As comunidades já possuem a certificação e aguardam pela titulação final por parte do Instituto Nacional de Colonização e da Reforma Agrária. (INCRA). As quatro comunidades quilombolas dessa região já possuem o reconhecimento formal da Comissão Estadual para Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (CEPCT-MG). A Comunidade de Mata dos Crioulos foi certificada pela Comissão em 2010, Vargem do Inhaí em 2011, em 2015 foi a vez da Comunidade Raiz e a Comunidade de Braúnas ainda luta pela certificação quilombola.

Luta que mobiliza quilombolas de todas as idades. Mariângela das Dores Alves, quilombola de 22 anos da comunidade de Vargem do Inhaí, aprendeu com seus pais a preservar a tradição da colheita de flores sempre-vivas e a se organizar com a juventude na defesa do seu território e contra violações de direitos humanos. 

“Ser quilombola é uma luta, e a chegada do Parque Nacional das sempre-vivas em 2002, desrespeitou nosso modo de vida. Chegaram sem obedecer a convenção 169 [ da OIT ] e com um discurso perverso de preservação. Preservar o que, se a gente já preservava nosso território?. A partir daí foram chegando os grileiros dizendo terra de quilombo é terra de ninguém, e que eles podem chegar e fazer o que quiserem. Por isso, a única forma da gente tirar esse pessoal de lá e mostrar que somos donos do território é com a titulação do INCRA ”, destaca a jovem quilombola.

Para Mariângela, que participou da elaboração dos protocolos comunitários de consulta prévia das comunidades apanhadoras de flores, os documentos são uma segurança para as comunidades.“Eu tenho que pensar em mim, mas também no meu vizinho. Esse protocolo veio com a união de ideias de diversas comunidades. Com ele pronto, temos que estudar mais e explicar para a comunidade que já fizemos nosso protocolo e nossas regras são essas. Para dizer um sim ou dizer um não, nós vamos nos assegurar no protocolo comunitário”, lembra ela.

Oficinas de formação

Durante a programação do Festival Comunitário na Comunidade de Pé de Serra (MG) também foram realizada oficinas de formação para Oficina Direitos Territoriais  os participantes. A assessora jurídica da Terra de Direitos Camila Cecilina Martins ministrou uma delas sobre “Direitos Territoriais”. Durante essa oficina, foram abordadas questões sobre qual o entendimento do conceito de território, quais os direitos das comunidades sobre esses territórios, e como alcançar a efetivação dessas garantias sobre seus territórios.

“Conseguimos agregar muitas pessoas e de todas as idades. Falamos sobre  direitos constitucionais, convenções internacionais, como a Convenção 169, o decreto quilombola e outras legislações que protegem essas comunidades. Além da importância da resistências pois, inclusive, a efetivação de direitos, muitas vezes, vem pela luta Principalmente no Brasil onde existe uma desigualdade muito grande”, destaca a assessora jurídica da Terra de Direitos.

“Gostei muito da oficina para a gente entender nossos direitos. Um dia chegaram seis carros na porta da minha casa querendo invadir a Serra. Eu não gostei disso. Agora tenho esse protocolo na mão como um ouro”, diz Maria da Luz Vieira da Silva, apanhadora de flor que participou da oficina. Outra oficina abordou a agroecologia, levantamento dos conhecimentos de plantas medicinais e seus usos e foi ministrada pelo integrante da Codecex Márcio de Souza Andrade. A juventude também teve seu espaço de discussão em um encontro de jovens das comunidades de apanhadoras/es coordenado pela apanhadora de flores e também integrante da Codecex, Mária de Fátima Alves.

Acesse o protocolo das Comunidades apanhadoras de flores e quilombolas

 

 

 

 

 

 

 

 



Ações: Biodiversidade e Soberania Alimentar

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