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A luta antirracista e a democratização do acesso à terra


* Por assessoria jurídica negra popular da Terra de Direitos: Aianny Monteiro, Camila Cecilina Martins, Ciro Brito, Maíra Moreira, Pedro Martins e Rafaela Santos

 

"Conceber a complexidade do que significa territorialidade, modo de vida e tradicionalidade é essencial para o exercício da advocacia popular". Foto: Ana Carolina Fernandes

 

Ainda hoje, após 130 (cento e trinta) anos da abolição formal - e inconclusa - da escravidão, busca-se concretizar o direito à terra para comunidades negras rurais. São várias as violências, conflitos e problemas que essas comunidades enfrentam, incluindo a não demarcação e titulação de seus territórios, a não compreensão de suas práticas de produção e dos seus modos de criar, fazer e viver e a criminalização das organizações e movimentos próprios das comunidades quilombolas, dos povos indígenas e de comunidades tradicionais, evidenciando e contribuindo para a perpetuação do racismo institucional.

A história do Brasil mostra que o direito à terra está intrinsecamente relacionado à questão racial, uma vez que o racismo estrutural edifica relações de poder que acabam por consolidar o direito à terra como um privilégio.

A desconstrução do direito à terra como um privilégio, ou seja, a democratização do acesso à terra passa também por um viés racial para garantir que a reparação histórica ao povo negro possa acontecer. Isso se reflete mais evidentemente na necessidade da titulação dos territórios quilombolas e no reconhecimento de uma série de outras territorialidades tradicionais que sofreram da mesma relação estrutural que impossibilitou o acesso à terra.

O conceito de territorialidade que caracteriza os povos originários, tradicionais e quilombolas está em disputa no âmbito jurídico, por se tratar de um entendimento coletivo que ultrapassa o sentido mercadológico e produtivo de terra, para apontar uma complexidade de vivências e tradições que esses povos constroem em suas terras tradicionalmente ocupadas. Esses sujeitos coletivos são legítimos e devem ser reconhecidos como sujeitos de direitos, autores e destinatários no ordenamento jurídico, enquanto parte diversificada do amálgama social.

A noção de terra, vista pelo sistema econômico como mercadoria, como propriedade privada, não se coaduna com a noção de território, que engloba o aspecto produtivo e de posse da terra, mas também o aspecto imaterial, ancestral, de uso tradicional, entendendo o meio ambiente e o território numa perspectiva de sociobiodiversidade.

Não obstante, conflitos envolvendo comunidades rurais negras relacionados a regularização fundiária evidenciam uma matriz argumentativa, por parte do sistema de justiça, que apontam ao desconhecimento da noção de “coletividades” e de suas relações com a terra, mesmo tendo o Estado brasileiro chancelado uma Constituição multicultural e pluriétnica, que desde 1988 reconhece direitos e garantias à comunidades quilombolas, povos indígenas e comunidades tradicionais.

Diversas reintegrações de posse no âmbito do Poder Judiciário, por exemplo, reafirmam raízes coloniais do Estado brasileiro, negando direitos aos quilombolas, às comunidades tradicionais e aos povos indígenas ao privilegiar o instituto da propriedade privada em detrimento do princípio da função social da terra ou de outros institutos jurídicos consagrados como da posse agrária e posse agroecológica, que tendem a englobar de maneira menos violenta as noções de terra, território e territorialidade de comunidades quilombolas, povos indígenas e povos e comunidades tradicionais.

Essa realidade é tanto fruto quanto alimentada pelos atores que compõem esse sistema de (in)justiça. Segundo os dados levantados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em relação ao perfil dos magistrados brasileiros no ano de 2018, a maioria esmagadora dos juízes no Brasil é branca (80,3%) e apenas 1,6% são pretas. Em relação a 2017, o número de juízes brancos aumentou - era 76% no ano anterior. Além disso, apenas 11 juízes se declararam indígenas e nenhum se declarou quilombola, por exemplo. Essa realidade reflete decisivamente o caráter das decisões proferidas nos litígios que envolvem grupos tradicionais. 

Por esses e outros motivos, há uma grande dificuldade em advogar em defesa de comunidades quilombolas, povos indígenas e comunidades tradicionais no Brasil. Nas pequenas comarcas ou nas capitais, o Judiciário é o mesmo: masculino, branco e elitizado. Que vê seus interesses em cada processo judicial que envolva o povo negro, não só por um pacto de classe, mas também por um pacto da branquitude de perpetuar seus privilégios.

Nós nos deparamos em todos os casos de defesa de comunidades tradicionais e quilombolas que o acesso a propriedade da terra está baseado não somente nas desigualdades sociais, mas também raciais. Se considerarmos que a abolição da escravatura ocorreu somente 38 anos após a edição da Lei que possibilitou a privatização da terra no Brasil, estamos lidando com uma estrutura de poder construída com objetivo de marginalizar a população negra.

Os grupos tradicionais vêm disputando voz e garantia de vários direitos no campo jurídico, procurando não abrir mão de suas especificidades, mas sedimentando o caminho para um ordenamento que garanta a plurietnicidade chancelada na Constituição e que reconheça não somente o direito à terra mas também ao território. Conceber a complexidade do que significa territorialidade, modos de vida e tradicionalidade é fundamental para o exercício do trabalho de assessoria jurídica popular. 

É um desafio entender a cosmovisões tradicionais e quilombolas nas suas formas de viver, conceber a realidade e lutar por seus direitos, posto que o ensino jurídico na Academia ainda carrega uma perspectiva eurocêntrica, colonialista, com os valores da percepção ocidental. Mas cabe ao sistema de justiça, com o apoio da advocacia popular (que se insere nele), enfrentar esse desafio, justamente buscando efetivar e garantir Justiça.

 



Ações: Defensores e Defensoras de Direitos Humanos
Eixos: Democratização da justica e garantia dos direitos humanos