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Capacidade organizativa e trajetória de luta pelo direito à terra resistem nos quilombos da atualidade


Foto: Dayse Porto

“Numerosas foram as formas de resistência que o negro manteve ou incorporou na luta árdua pela manutenção da sua identidade pessoal e histórica. No Brasil, poderemos citar uma lista desses movimentos que no âmbito “doméstico” ou social tornam-se mais fascinantes quanto mais se apresenta a variedade de manifestações: de caráter linguístico, religioso, artístico, social, político, e de hábitos, gestos, etc. Não nos cabe aqui, porém, discorrer sobre esses movimentos. Um movimento social e político é o objetivo do nosso estudo. Trata-se do Quilombo (kilombo), que representou na história do nosso povo um marco na sua capacidade de resistência e organização. Todas as formas de resistência podem ser compreendidas como a história do negro no Brasil.[1]


Pensar em quilombos, segundo a historiadora Beatriz Nascimento[2], requer encará-los como sistemas sociais alternativos, ou seja, muito além do que conceituavam os escravocratas coloniais, o quilombo caracteriza-se como um espaço que abrange conotações de resistência étnica e política. Tendo como característica mais significativa sua capacidade organizativa, esses sistemas nunca deixaram de existir e continuam resistindo nos quilombos da atualidade.

No artigo “O conceito de quilombo e a resistência cultural negra[3]”, Nascimento afirma que, como instituição, o quilombo, a fim de resistir à opressão racista da sociedade brasileira, guarda características singulares do modelo de organização social já existente no continente africano. Segundo a estudiosa, esse fato histórico configura-se como consequência cultural da ação de mulheres e homens que não se permitiram ser considerados propriedade de outros.

A reação à violência e a posterior fundação de quilombos constitui memória de luta e resistência para negras e negros ainda nos dias de hoje. Nesse sentido, a investigação sobre quilombos e quilombolas parte da contradição dos processos de reprodução do capital, em que, por mais que um sistema de opressão domine, foi e é possível criar formas e espaços de resistência a partir das brechas desse sistema.

A reivindicação pelo direito à terra nasce intrínseca à fundação de quilombos, que só teve seu conceito elaborado pelos colonizadores portugueses em 1740, após os levantes promovidos por mulheres e homens negros do nordeste no século XVII. O pensamento de Beatriz Nascimento vai muito além desse discurso, que conceitualizou quilombo como “habitação de negros fugidos que passem de cinco[4]”, estereótipo racista que permeia o imaginário social acerca das comunidades quilombolas até hoje. Ao associar o fenômeno quilombo a um histórico espaço de resistência, a historiadora o elege como o instrumento ideológico que inaugura o século XX.

“Tendo findado o antigo regime, com ele foi-se o estabelecimento como resistência à escravidão. Mas justamente por ter sido durante três séculos concretamente uma instituição livre, paralela ao sistema dominante, sua mística vai alimentar os anseios de liberdade da consciência nacional[5]”, assinala Beatriz Nascimento. Se antes tinha servido de manifestação reativa ao colonialismo, a historiadora defende que nos anos 70 o quilombo torna-se um código que reage ao colonialismo cultural e reafirma a herança ancestral como reforço de uma identidade histórica brasileira.

Trecho da fala de Beatriz Nascimento sobre a história do Brasil, que negligencia a história do negro tratando só do tema da escravidão deixando de lado outras formas de viver, como a organização social do quilombo, que não se esgota somente na história da repressão, retirada do documentário “O negro da senzala ao soul”, produzido pelo Departamento de Jornalismo da TV Cultura de São Paulo, em 1977.

Os quilombos, tal qual como conhecemos atualmente, nunca foram grupos isolados ou de populações homogêneas, mas sim espaços de sociabilidade que acolhe pessoas que mantêm traços ou vínculos culturais, como a forma de se expressar e de se relacionar com a terra. O desenvolvimento de práticas cotidianas de resistência na manutenção e na reprodução de modos de vida característicos e a histórica luta pela efetivação de seu direito ao território, configuram as comunidades quilombolas do Brasil.

Espalhados por todo território nacional, os quilombos contemporâneos não se classificam a partir de isolamento geográfico e/ou cultural, assim como a homogeneização racial não é um elemento fundamental em sua conceituação. Singulares e cheio de especificidades, esses grupos desenvolvem seu modo de vida tradicional em diferentes contextos locais.

A instrumentalização política das categorias “quilombo” e “quilombola”, forjada na luta pela terra, propõe identificar as comunidades quilombolas a partir de práticas de resistência e experiências que constroem uma trajetória comum e que cobram do Estado o reconhecimento de direito à terra.

“O surgimento deste termo no âmbito do direito e o reconhecimento do direito à terra que o acompanha, está perfeitamente alinhado com as expressões de luta contra o racismo”, acrescenta o assessor jurídico da Terra de Direitos, Fernando Prioste. Em sua pesquisa de dissertação, o advogado defende que “a ressignificação do termo quilombo é um elemento do processo histórico, material e dialético das lutas contra o racismo”[6].

Quilombo como símbolo de luta ancestral: autorreconhecimento como forma de resistência

 

 

Desde a abolição formal e inconclusa da escravidão em 1888 até a década de 70, segundo argumenta Beatriz Nascimento, “com raras exceções, o negro brasileiro não pôde expressar-se por sua voz na luta pelo reconhecimento de sua participação social”. Destacando que tal expressão surge em um momento em que o país vivia sob a repressão de uma ditadura militar, a historiadora afirma que foi a retórica do quilombo, a análise deste como sistema alternativo, que serviu de símbolo principal para a trajetória do movimento negro.

O ideal de território livre onde é possível dedicar-se às práticas culturais e sociais próprias, ao mesmo tempo em que se resiste ao sistema que historicamente negligenciou direitos, foi limitado ainda no período escravocrata. Sendo que nem a assinatura da Lei Áurea, nem a constitucionalização do direito à terra para quilombolas representam sua realização prática, as comunidades quilombolas da atualidade lutam por reconhecimento e pela efetivação de seu direito ao território.

Lídia Roberta de Matos Amaral, liderança da comunidade quilombola de Pérola do Maicá, Oeste do Pará, acredita que o racismo é um dos grandes obstáculos para o reconhecimento e titulação das comunidades quilombolas. “Se a gente procurar o conhecimento de onde veio nossas raízes, a nossa história, a gente se fortalece. Mais é muito difícil da gente mesmo se reconhecer por causa do preconceito que tem, e a gente recebe tiro de tudo quanto é lado, até no jeito de olhar”, conta.

A quilombola lembra que foi após ficar “perdida” nas aulas de história na escola que começou a se informar sobre suas raízes e descobriu sua origem quilombola. Ela acredita que o autorreconhecimento não é um processo simples devido a expulsão de famílias quilombolas de seus territórios, “a família da gente veio migrando de comunidade em comunidade até chegar na área urbana, e aí nisso acabou se perdendo”.

A Comunidade Remanescente de Quilombo de Arapemã Residente no Pérola do Maicá formou-se no meio urbano de Santarém após a migração de parte dos quilombolas da comunidade rural de Arapemã. A fundação da Associação de Remanescentes de Quilombos do Arapemã residentes no Maicá, da qual Lídia é presidenta, foi parte de um processo de reflexão sobre a realidade territorial dos quilombolas, dividida em dois espaços físicos que abrigam comunidades que compartilham da mesma história e modos de vida.

Em diálogo com o pensamento de Beatriz Nascimento, Lídia considera a busca pelo conhecimento e o envolvimento com a militância quilombola formas de emancipação. Ao falar sobre a experiência de articulação das mulheres quilombolas de Santarém, ela conta que muitas mulheres chegam ao movimento “sem chão”, mas que aos poucos elas conquistam autonomia para lutar contra as opressões fundamentadas no racismo, machismo e classe social.

“A gente chega aqui sem chão, aí gente começa a aprender, obter conhecimento e a gente vai se auto profissionalizando, e muitas acabam conseguindo um emprego”, afirma. Defendendo que a militância quilombola inspira e gera bons frutos, Lídia acredita no efeito dominó do resultado deste trabalho, “aí ela cria asas, voa e vai longe”, declara.

O contexto de tripla exclusão a qual as mulheres negras estão submetidas, pela interconexão entre gênero, raça e classe será aprofundado em outros materiais da série especial quilombola “Na raça e na cor”.  Acompanhe!

Luta pela terra: garantia constitucional e a negação de direitos na prática

Lídia é militante quilombola da Federação das Organizações Quilombolas de Santarém (FOQS), organização que representa as 12 comunidades quilombolas do município: Arapemã, Bom Jardim, Murumuru, Murumurutuba, Nova Vista do Ituqui, Patos do Ituqui, Pérola do Maicá, Saracura, São José do Ituqui, São Raimundo do Ituqui, Surubiú-Açú e Tiningú.

Promovendo uma série de atividades que visam fortalecer a luta de suas comunidades pelo reconhecimento e efetivação de seu direito ao território e o enfrentamento a sistemática violação de direitos, a Federação acumula mais de 10 anos de atuação pela implementação de políticas públicas paras as comunidades da região.

Os 12 territórios quilombolas da cidade encontram-se em diferentes etapas da luta pela titulação, sendo que nenhum foi titulado ainda. As comunidades Pérola do Maicá, Bom Jardim, Arapemã, Saracura e Tiningu estão com Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTIDs) publicados, e outras ainda em fase de elaboração do relatório.

Todas essas comunidades, independente do estágio do processo administrativo, são prejudicadas pela insuficiência de recursos necessários para a efetivação da regularização quilombola. Segundo informações da Superintendência Regional do Incra, o orçamento anual para a titulação dos territórios da região em 2017 é de R$ 19.423, o que significa a quase estagnação total da política. Esse valor contempla apenas os custos para reconhecimento de terras, não contabilizando o valor de indenizações para desapropriação de propriedade privadas sobrepostas às terras quilombolas.

Para Fernando Prioste, considerar esses dados é relevante, pois evidencia que o projeto político de país do Governo Federal, que não tem como prioridade resolver o histórico problema de excessiva concentração fundiária no Brasil, muito menos viabilizar condições reais para a reprodução física, social, econômica e cultural das comunidades quilombolas.

“Desses elementos é possível concluir que a seguir o ritmo atual de titulação de territórios quilombolas serão necessários ao Incra ao menos 605 anos para titular todos os processos quilombolas instaurados no âmbito da autarquia agrária[7]”, argumentou em sua pesquisa de dissertação. Desta forma, apesar da existência de políticas específicas, a falta de recursos financeiros e de vontade política do Estado inviabiliza o avanço real na efetivação do direito quilombola à terra.

Desmonte da política fundiária quilombola em âmbito nacional

 

 

Segundo dados da Fundação Cultural Palmares, publicados no último dia 12, existem 2.958 comunidades quilombolas no Brasil. A garantia definitiva de seus territórios, figurada na titulação, ainda caminha a passos muito lentos e é constantemente inviabilizada pelas políticas orçamentárias destinadas pelo Governo Federal à política quilombola.

Passados quase 30 anos da garantia constitucional do direito quilombola à terra, o governo federal titulou apenas 37 territórios em todo o país, sendo que 11 deles apenas parcialmente, segundo dados da Comissão Pró-Índio de São Paulo. O total de 168 territórios quilombolas titulados no país foi viabilizado em grande parte pelas regularizações realizadas por governos estaduais.

Em 2017, o orçamento do Incra para a regularização de territórios quilombolas é de pouco mais de R$ 4 milhões, sendo R$ 569 mil para reconhecimento e R$ 3.531 mil para desapropriações de terras, o que deve perpetuar o cenário de poucas titulações e lentidão no andamento dos processos. A gradual diminuição dos recursos destinados a essa política, que este ano foi 94% menor em relação ao orçamento de 2010, evidencia “que não haverá titulação das terras das comunidades quilombolas se não houver grandes mudanças políticas, se não houver muita mobilização por parte das comunidades quilombolas”, defende Fernando Prioste.

Totalmente desproporcional à demanda, o recurso disponibilizado pelo Governo Federal inviabiliza a efetivação do direito quilombola à terra, impactando diretamente a vida de comunidades em todo país e colocando em risco a política pública de titulação dos territórios quilombolas.

Resistência quilombola: um projeto de emancipação coletiva

De refúgio de pessoas que lutavam contra a escravidão a sede de todas as formas de resistência cultural, o quilombo passa a ser, segundo Beatriz Nascimento, sinônimo de povo negro, sinônimo de comportamento do negro e esperança para uma sociedade melhor. “Tudo, de atitude à associação, seria quilombo, desde que buscasse maior valorização da herança negra[8]”, definiu.

Assim, conclui a historiadora, o quilombo é muito poderoso no processo de legitimação da identidade negra brasileira para a construção de um autorreconhecimento étnico e nacional. A brecha encontrada no sistema que explorou mulheres e homens “projeta uma esperança de que instituições semelhantes possam atuar no presente ao lado de várias outras manifestações de reforço à identidade cultural[9]”.

Neste sentido, a celebração do dia 20 de novembro é instituída como Dia da Consciência Negra ou Afro-Brasileira contrapondo-se ao 13 de maio. Em homenagem ao líder quilombola Zumbi dos Palmares, o movimento negro sugeriu a data por acreditar que “a lembrança de um acontecimento em todo os sentidos dignificante da capacidade de resistência dos antepassados traria uma identificação mais positiva do que a Abolição da escravatura, até então vista como uma dádiva de cima para baixo, do sistema escravagista e de S. Altera Imperial[10]”.

Denúncia

Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) e organizações da sociedade civil protocolaram, no último dia 21, uma representação junto à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) para que o Estado brasileiro seja oficialmente questionado acerca da não realização do direito constitucional quilombola à terra e território.

Endereçado à Relatora sobre os Direitos dos Afrodescendentes e contra a Discriminação Racial, ao Comissionado Encarregado da Unidade sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ao Relator especial para o Brasil e ao Secretário Executivo da CIDH, o documento solicita que a Comissão cobre informações sobre a política pública de titulação dos territórios quilombolas no Brasil. Para isso, as 9 organizações e movimentos que assinam a representação sugerem à CIDH seis perguntas acerca do assunto, que podem ser feitas ao Estado brasileiro.

Resgatando o contexto de luta e resistência quilombola pelo reconhecimento de seu direito à terra, a representação aponta desafios para a realização prática do direito constitucional quilombola à terra.

Direito quilombola em pauta no STF

Pela terceira vez o direito constitucional quilombola à terra estará na pauta do Supremo Tribunal Federal (STF) quando a corte irá retomar o julgamento do Decreto Federal nº 4887/03, marcado para 16 de agosto. A primeira vez foi em 2012, com o voto do ministro Cesar Peluso pela inconstitucionalidade do decreto, e a segunda em 2015, com o voto pela constitucionalidade da ministra Rosa Weber.

A decisão volta à pauta com voto do ministro Dias Tóffoli e não há previsão de finalização do julgamento pois pode haver outro pedido de vista que interrompa o processo. Caso isso não aconteça, a expectativa é que todos os ministros apresentem seus votos, determinando a posição final do STF sobre a constitucionalidade do decreto.

Se há incerteza por parte dos movimentos quilombolas quanto à data em que o caso será definitivamente julgado, mais incerto ainda é o resultado do julgamento.

Assista a entrevista com a quilombola Lídia Roberta de Matos Amaral na íntegra:

 

 

Referências: 
[1] NASCIMENTO, Beatriz. O conceito de quilombo e a resistência cultural negra. In: Eu sou Atlântica: Sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento. Imprensa Oficial: São Paulo, 2006, p. 117.
[2] Estudiosa de questões relacionadas ao racismo, Beatriz Nascimento foi uma das maiores especialistas do Brasil na história dos quilombos. Estava trabalhando em um mestrado em mídia na UFRJ quando, em 28 de janeiro de 1995, foi morta por cinco tiros, depois de aconselhar uma amiga a deixar um namorado violento. Como historiadora, foi reconhecida em vida através da publicação de seus escritos, premiações do documentário Orí e também pela outorga do título Mulher do Ano, em 1986, pelo Conselho Nacional da Mulher Brasileira. Um esboço de projeto, guardado em seu acervo no arquivo nacional, indica que ela pretendia continuar a pesquisa acerca de quilombos com foco nas mulheres quilombolas.
[3] Publicado originalmente na Revista Afrodiáspora nº 6-7 de abril/dezembro de 1985.
[4] Conceito de quilombo do Conselho Ultramarino em consulta ao Rei de Portugal, em 2 de dezembro de 1740.
[5] NASCIMENTO, Beatriz. O conceito de quilombo e a resistência cultural negra, op. cit. p. 123.
[6] PRIOSTE, Fernando. Terras fora do mercado: a construção insurgente do direito quilombola. 2017. 139 f. Dissertação – PUC, Curitiba, p. 80.
[7]  Ibid. p. 131.
[8] NASCIMENTO, Beatriz. O conceito de quilombo e a resistência cultural negra, op. cit. p. 124.
[9]  Ibid. p. 125.
[10] Ibid. p. 124.


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Ações: Quilombolas

Eixos: Terra, território e justiça espacial